MEMÓRIAS COM FUTURO
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Trazemos hoje a esta rubrica um texto de notável significado.
O facto de ele constituir uma preciosa colaboração de Eduardo Lourenço no primeiro número da revista Finisterra justificaria, por si só, a sua inclusão. Mas é a notável qualidade da reflexão que ele contém que o coloca neste espaço com indiscutível merecimento. Partindo, quase no final dos anos oitenta do seculo passado, de uma remissão para uma outra reflexão, então com quatro décadas, de António Sérgio acerca do futuro e do socialismo, Lourenço constata como mudara o contexto e como se mantinham os desafios. Hoje, longe da hegemonia neoliberal de então, mais longe ainda duma consistente alternativa progressista, permanecem de enorme lucidez e atualidade as exigências que se colocam a quem se continua a rever nas ideias do socialismo democrático. Estas são, como nunca, memórias com futuro. |
Subordinando o nosso encontro ao tema do socialismo do futuro, os camaradas que o organizam não pretenderam decerto escrever mais um capítulo de futurologia, e ainda menos pensaram que tal tema possa ter ressonâncias de provocação. Antes de mais, a nós mesmos, socialistas presentes e do presente, num contexto histórico-cultural em que a ideia e a realidade do socialismo são aludidos e pensados pelo discurso dominante do Ocidente como precisamente, sem futuro. É claro que se pensasse que as perspectivas socialistas e o socialismo pertencem, no melhor dos casos a uma utopia generosa definitivamente desmentida pelas experiências históricas do nosso século que tentaram inscrevê-los na realidade, não estaria aqui se não velar um cadáver invocado com tanta complacência e ardor pelas carpideiras eufóricas do liberalismo universal, pregado com a evidência de solução incontornável, imposta pelas novas estruturas de produção hiper-capitalista. De facto, é precisamente como no future que o socialismo é aludido num discurso liberal que não se apresenta apenas como mera cobertura de uma prática económica para a qual se afirma não haver alternativa, mas como discurso cultural englobante, expressão de uma nova racionalidade paradoxalmente requerida ou imposta pela morte ou descrédito teórico e prático daquela racionalidade que desde o século XVIII, o da revolução francesa, sobredeterminava a visão e o discurso fundador do socialismo como discurso adequado à compreensão do processo capitalista moderno e à solução das contradições que lhe eram segundo eles inerentes. É esta pretensão, oferecida como lugar comum e horizonte óbvio para a integração cultural da revolução económica a que assistimos, revolução que não precisa sequer de atores por ser ela própria o sujeito das transformações fulgurantes e incontestáveis do ponto de vista do fim a que se destinam, que precisa ser examinada para que seja pensável qualquer futuro para aquela perspectiva que o liberalismo declara morta.
É claro que este triunfalismo do discurso liberal cujo sucesso em termos de publicidade está já contido na reiteração como evidência do liberalismo, é também uma certa forma de resposta (ou punição) a antiga facilidade com que o discurso socialista enterrava alegremente um capitalismo teoricamente visado como defunto pelo que continha de contrário a racionalidade supostamente conhecida ou decifrada, não só do processo económico moderno, mas da própria História. Se a isso acrescentarmos que, para além da crença de ter decifrado definitivamente os mecanismos económicos estávamos em condições de os controlar, à maneira de Marx ou de outros socialistas, de modo que tal enterro podia ser até imaginado como já cumprido, este rivalismo liberalista tem foros de lição. É essa lição que deve ser meditada, não apenas exorcizada pelas críticas ainda demasiado influídas pela antiga visão histórica e cultural de que a ideia socialista era o coroamento, ou pela denúncia, necessária, mas excessivamente moralista das contradições, das falhas, dos sucessos caramente pagos desse euforizante triunfalismo liberalista o assim chamado. Para imaginar o espaço que não é ainda o seu, ao menos na visão socialista que aquilo nos reúne, para imaginar esse futuro que sarcasticamente nos é apresentado no discurso liberal como passado, e passado pouco grato, é necessário hoje confrontarmo-nos com essa realidade, com essa evidência de um projeto liberal que não se limita apenas ao exemplo, talvez não muito probante, para nós, europeus, da América de Reagan, mas à Inglaterra, a Inglaterra da Senhora Thatcher, e em última análise, à Europa dos 12 onde já estamos imersos.
Não é apenas com a indignação ou encantações, ou com o testemunho da nossa boa consciência socialista que se abrirá esse futuro para o projeto que representamos. Era minha intenção, antes de conhecer o título destes encontros, de me ocupar do que se poderia chamar “o imaginário socialista” e, em particular, o nosso, de portugueses. Não o farei, mas lembrarei brevemente a forma que tinha a ideia socialista em Portugal há apenas 41 anos, no momento em que se espremia no discurso cooperativista de António Sérgio, para mostrar até que ponto, com maior boa vontade, coerência e lucidez, o futuro do socialismo em Portugal, visto do presente onde agora estamos não corresponde ao que o autor da Alocução aos Socialistas, imaginava em 1947. Não o farei para calçar imaginariamente as botas do grande homem, que me ficariam ao mesmo tempo demasiado grandes e apertadas nos tornozelos, mas para religar o imaginário de ontem, um ontem relativamente próximo, ao de hoje, e o de hoje, ao de amanhã. Duas notas ressaltam nessa famosa alocução: a serenidade quase onírica com que António Sérgio expõe o seu programa socialista, sem querer saber para nada do contexto da época, em nossa casa (e que contexto); e a candura digna de Dom Quixote, e a esse título sempre exemplar, com que imagina ser fácil implantar o socialismo em Portugal. Mais do que fácil, óbvio. São as razões desse otimismo que são interessantes. Mais do que nos grandes países industriais do Ocidente, segundo António Sérgio era fácil implantar o socialismo em Portugal, minando do interior, através do movimento cooperativista, o nosso bem conhecido capitalismo de índole rural, capitalismo de país pobre. Sérgio conta com a intervenção do Estado para essa destruição do Estado que existe, desestruturação pacífica, segundo ele, da indústria ou da propriedade privada. Sem caricaturar, tem-se, por vezes, o sentimento de que contava com Salazar para implantar o socialismo em Portugal. E não se imagine que sob a sua linguagem idealizante e de grande elevação ética, António Sérgio sugere uma forma de socialismo que hoje diríamos moderada o socialismo do possível. Não. Como Dom Quixote, ou como mais tarde os estudantes de Maio, o nosso cavaleiro da Razão pede o impossível, o que ele chama, em termos claros, a coletivização. Em resumo, púnhamos os bons métodos de administração do capitalismo, os que a experiência abonou, os que ela mostrou eficazes, ao serviço de finalidades essencialmente socialistas, isto é, de produção coletivista. Assim falava em 1947, na aurora da guerra fria, num contexto internacional preciso, tendo à vista uma prática socialista que não é a sua, mas existe, um dos pais espirituais do nosso socialismo.
Resumamos: era o seu um projeto, não só fácil, mas eminente, de um socialismo que, embora de maneira suave, tinha como meta e horizonte a colectivização. Assim, para Sérgio, o socialismo e o futuro confundem-se já e deviam confundir-se num imperativo, não apenas de justiça social, de uma organização racional da sociedade, mas da própria razão e da cultura humanística de que ela era a essência e o resultado.
Seria fácil, mas absurdo, ironizar, evocando este sonho sergista. O que nesse texto pertence a uma utopia datada, não deve surpreender. Só o invoco para mostrar como 40 anos depois este quixotismo, na tradição da utopia socialista e do utopismo que nele deverá sempre existir para merecer este este título, nos é interdito. Nos interditos sobre a forma sergista. O futuro não confirmou a visão otimista de Sérgio, sobretudo sobre aquela que se visava em termos de coletivização. Esse futuro foi o da dificuldade, aparentemente insanável, de a levar a cabo como imperativo socialista sem destruir aquilo que no socialismo é exigência de liberdade concreta, coletiva sem dúvida um coletivismo de indivíduos - que era aliás aquela que Sérgio imaginava. Não, não era fácil atravessar com a lança os muros da realidade capitalista moderna, mesmo da nossa tão fraca. O capitalismo encontraria não apenas uma capacidade de renovação como de intensificação de sua energia, hipótese impensável para a geração de Sérgio. Esse capitalismo deu origem a um discurso de justificação refinado, sem complexos, da sua própria prática enquanto prática liberal, como se o autor do método Coué, em pessoa, tivesse encarnado, não só nos Friedman e Hayek que o repensaram, como nos yuppies que deles vivem. O seu discurso tornou-se o discurso implícito de uma prática económica do homem da rua ocidental que joga na Bolsa como se fosse um émulo de Rothschild.
Inacreditável evolução, ou revolução sem aspas ou com elas, numa sociedade capitalista que vive em tempo real a euforia de uma coletividade e quando calha a sua disforia, quando de súbito a grande máquina capitalista, já sem capitalistas dentro, se auto-desregulariza? Que o preço desse sucesso dos micro-processadores, seja como na antiga alegoria de Petrarca El Triunfo de lá Muerte, um chão juncado de desempregados, zonas inteiras sinistradas por obsolescência de produtos de ponta criados por robôts desse universo, perto do qual Dallas é uma Disneylândia, não obsta a que a visão liberal impere e se comemore como puro produto de fatalidade e dos deuses do progresso. Também para essa visão liberal se invoca o celebrado “sentido da História”. Só que, agora, esse sentido da História se conjuga bem com o seu oposto, que a sua teoria é uma epistemologia do Caos, do Caos como a expressão original da liberdade. É o que permite a uma grande parte da inteligentsia do Ocidente de sintonizar hoje com aquilo que há 50 anos lhe faria horror. Tal é o nosso presente ou a parte mais visível da sua máquina de produção em segundo e terceiro grau, e por ser como é, impõe à cultura socialista, e mesmo ao socialismo como cultura, o dever de imaginar uma contra resposta adequada ao desafio liberalista bem mais audaciosa e comportando mais riscos, que a do tempo de António Sérgio. Não haverá futuro, em todo o caso, futuro que seja modelado por uma visão e uma intenção que mereça chamar socialismo sem que concretamente se encontre uma resposta, um discurso para pensar este mundo económico, este tipo de existência ultra-capitalista cujo modelo, efeitos e ressonâncias, afetam hoje o planeta inteiro e até o ultrapassam, pois nunca os homens investiram mais no futuro do que nós, próximos colonizadores de galáxias.
A grande tentação, na prática tem já milhares de exemplos, é de ficar fascinados por esse sucesso objetivo, por esta estrutura, aparentemente conforme, à vontade de renovação e de poderio de uma ordem social imperativa, deixando ao socialismo um futuro de mero eco moral sempre em atraso, confinando-o numa lamentação piedosa diante de catástrofes económicas ou sociais inscritas como tributo na conta do Progresso, como nos melhores dias do século XIX. Outra é a de encontrar um espaço dentro do mesmo universo, uma adaptação a ele que lhe modere o ritmo e a finalidade implacável, em suma, que o humanize. É uma herança da esquerda europeia, sempre que o ocupou ou foi poder, ao serviço de uma ideia da cultura humanista, instância nobre, reguladora e espaço idealizado da aventura humana que infelizmente, na sua realidade mais trivial, é atroz e sem cura. Por isso não poderá ser através desta figura da cultura enquanto expressão de uma racionalidade que por si mesma seria fator de equilíbrio, de ordem, de justiça, etc., que o combate pelo socialismo pode hoje ser travado quando vemos toda uma literatura ou o mesmo liberalismo como cultura, ter a audácia de convocar a mais alta tradição crítica do Ocidente para ajudar a vender os seus produtos. O carácter recuperador do que apetece apelidar de Capitalismo Cultural é uma evidência. Já o pusera à prova domesticando a prática subversiva da arte moderna, assimilando-a títulos de bolsa mais rendosos e mais nobres do que eles. Afirma Mercedes Benz, por exemplo, utiliza as grandes sombras de Espinosa, de Descartes ou de Leibniz, para sobre vender enobrecer os seus, aliás maravilhosos, produtos (dizem, que eu não tenho meios para realmente experimentar). Tal como a Imprensa que ecoa essa euforia liberal e se auto-proclama inteligente como Einstein, e que do seu ponto de vista, tirando a pretensão, talvez o seja.
O que é possível fazer para preparar um futuro socialista neste instante em que um mensário francês, intitulado O Liberal, confessa, estático e feliz, que para que as novas gerações realistas, filhas do seu tempo, Wall Street substitui Katmandu? Os lemas novos são: ganhar, avançar, triunfar, ser o ator de uma “performance”, como afirmação da plenitude de si. Não é fácil resistir a este canto de sereia do neo-individualismo contemporâneo, indiferente a qualquer transcendência ética, em uníssono com o produto sofisticado que justifica e alimenta o fluxo sem sujeito da nova produtividade hiper-capitalista, enfim, liberta dos fantasmas repressivos, ascéticos, herdados de vários milénios de judeu-cristianismo. Mon désir, como dizem os renascentistas, critério supremo e meio de liberdade, valor de referência da cultura humanística de esquerda passou a ser cobertura - ouro do liberalismo económico, para quem o único conteúdo do conceito de liberdade, é o de conquistar para si o exclusivo no mercado. A cultura liberal reivindica até a antiga subversão, como por exemplo, a revolta situacionista, o Maio de 68 contra a ordem capitalista Ocidental, como expressão da liberdade individual, como paradigma da independência de que hoje devem fazer gala os grandes empreendedores, vendedores, criativos, etc. Não há nenhum órgão de influência até de “esquerda” que não se regozije com o nascimento deste novo espaço de prazer e de liberdade, tão outro que o do tempo dos grandes temores dos anos 60, pânico diante do desenvolvimento anárquico de produção, apologia do crescimento zero pelo Clube Roma, temor do apocalipse nuclear, etc. Em suma, o instante Ocidental está cheio como um ovo do gozo do seu próprio sucesso. Um signo entre outros: em plena agitação estudante em França, no Outono de 86, a empresa Juniores manteve o seu Congresso em La Villette e anunciou 60 milhões de francos de benefícios. No future. O futuro é aqui.
E em Portugal? A situação particular nossa, o facto de que enquanto expressão política, o projeto socialista em Portugal possa ainda ser vivido como um certo optimismo, embora diverso do de Sérgio, é mais fácil de assumir do que na restante Europa (ao menos na sua mera elocução), torna menos oprimente esta deprimente euforia Ocidental do neoliberalismo. Mas seria de uma cegueira culposa não perceber que esse neoliberalismo e a cultura que o exprime e por sua vez os justifica no plano da polémica, da publicidade, da sociabilidade, são mais um dos meus fantasmas de estrangeirado à força. A realidade é que a ideia mesma de Socialismo e a Cultura e o discurso clássicos que o justificavam que está em crise.
Para ter futuro, não como mera expressão na ordem política, democrática, o socialismo terá como obrigação primeira reinventar um novo discurso cultural, revisitar seriamente o seu imaginário, que entre nós, ainda o protege, aparentemente, do fascínio do discurso pseudo-liberal. Não é tarefa de eleitos, mas de todos que sabem, sem ser de ciência certa, que há na ideia e no projeto socialista - qualquer que seja o desmentido brutal das suas versões utópicas - uma exigência, uma Verdade que nem é mais gritante eficácia do ultra-capitalismo planetário consegue ocultar. Debaixo das pedras da rua, a praia, diziam os estudantes de 68. Debaixo da fachada rutilante numa sociedade que exclui e remete para o nada social uma fração inumerável da comunidade humana, não descobrimos praia nenhuma. Mas tão só o espectáculo duma sociedade dividida entre a euforia dos conquistadores yuppies e as suas vítimas, mesmo se estas recebem desse universo rutilante algumas migalhas de sonho que lhe permitem imaginar que estão ainda dentro do círculo iluminado.
Para os que acham simplesmente ética esta conclusão, não tenho resposta a dar. O socialismo é a ética social em ato ou não é nada. Estou certo de pouca coisa, mas não duvido de que o futuro para o socialismo ou se alimenta dessa convicção e das consequências práticas que dela relevam ou sucumbirá, convertendo-se numa legenda sem leitura e sem leitores.
O texto segue a grafia original publicado na Finisterra nº1
É claro que este triunfalismo do discurso liberal cujo sucesso em termos de publicidade está já contido na reiteração como evidência do liberalismo, é também uma certa forma de resposta (ou punição) a antiga facilidade com que o discurso socialista enterrava alegremente um capitalismo teoricamente visado como defunto pelo que continha de contrário a racionalidade supostamente conhecida ou decifrada, não só do processo económico moderno, mas da própria História. Se a isso acrescentarmos que, para além da crença de ter decifrado definitivamente os mecanismos económicos estávamos em condições de os controlar, à maneira de Marx ou de outros socialistas, de modo que tal enterro podia ser até imaginado como já cumprido, este rivalismo liberalista tem foros de lição. É essa lição que deve ser meditada, não apenas exorcizada pelas críticas ainda demasiado influídas pela antiga visão histórica e cultural de que a ideia socialista era o coroamento, ou pela denúncia, necessária, mas excessivamente moralista das contradições, das falhas, dos sucessos caramente pagos desse euforizante triunfalismo liberalista o assim chamado. Para imaginar o espaço que não é ainda o seu, ao menos na visão socialista que aquilo nos reúne, para imaginar esse futuro que sarcasticamente nos é apresentado no discurso liberal como passado, e passado pouco grato, é necessário hoje confrontarmo-nos com essa realidade, com essa evidência de um projeto liberal que não se limita apenas ao exemplo, talvez não muito probante, para nós, europeus, da América de Reagan, mas à Inglaterra, a Inglaterra da Senhora Thatcher, e em última análise, à Europa dos 12 onde já estamos imersos.
Não é apenas com a indignação ou encantações, ou com o testemunho da nossa boa consciência socialista que se abrirá esse futuro para o projeto que representamos. Era minha intenção, antes de conhecer o título destes encontros, de me ocupar do que se poderia chamar “o imaginário socialista” e, em particular, o nosso, de portugueses. Não o farei, mas lembrarei brevemente a forma que tinha a ideia socialista em Portugal há apenas 41 anos, no momento em que se espremia no discurso cooperativista de António Sérgio, para mostrar até que ponto, com maior boa vontade, coerência e lucidez, o futuro do socialismo em Portugal, visto do presente onde agora estamos não corresponde ao que o autor da Alocução aos Socialistas, imaginava em 1947. Não o farei para calçar imaginariamente as botas do grande homem, que me ficariam ao mesmo tempo demasiado grandes e apertadas nos tornozelos, mas para religar o imaginário de ontem, um ontem relativamente próximo, ao de hoje, e o de hoje, ao de amanhã. Duas notas ressaltam nessa famosa alocução: a serenidade quase onírica com que António Sérgio expõe o seu programa socialista, sem querer saber para nada do contexto da época, em nossa casa (e que contexto); e a candura digna de Dom Quixote, e a esse título sempre exemplar, com que imagina ser fácil implantar o socialismo em Portugal. Mais do que fácil, óbvio. São as razões desse otimismo que são interessantes. Mais do que nos grandes países industriais do Ocidente, segundo António Sérgio era fácil implantar o socialismo em Portugal, minando do interior, através do movimento cooperativista, o nosso bem conhecido capitalismo de índole rural, capitalismo de país pobre. Sérgio conta com a intervenção do Estado para essa destruição do Estado que existe, desestruturação pacífica, segundo ele, da indústria ou da propriedade privada. Sem caricaturar, tem-se, por vezes, o sentimento de que contava com Salazar para implantar o socialismo em Portugal. E não se imagine que sob a sua linguagem idealizante e de grande elevação ética, António Sérgio sugere uma forma de socialismo que hoje diríamos moderada o socialismo do possível. Não. Como Dom Quixote, ou como mais tarde os estudantes de Maio, o nosso cavaleiro da Razão pede o impossível, o que ele chama, em termos claros, a coletivização. Em resumo, púnhamos os bons métodos de administração do capitalismo, os que a experiência abonou, os que ela mostrou eficazes, ao serviço de finalidades essencialmente socialistas, isto é, de produção coletivista. Assim falava em 1947, na aurora da guerra fria, num contexto internacional preciso, tendo à vista uma prática socialista que não é a sua, mas existe, um dos pais espirituais do nosso socialismo.
Resumamos: era o seu um projeto, não só fácil, mas eminente, de um socialismo que, embora de maneira suave, tinha como meta e horizonte a colectivização. Assim, para Sérgio, o socialismo e o futuro confundem-se já e deviam confundir-se num imperativo, não apenas de justiça social, de uma organização racional da sociedade, mas da própria razão e da cultura humanística de que ela era a essência e o resultado.
Seria fácil, mas absurdo, ironizar, evocando este sonho sergista. O que nesse texto pertence a uma utopia datada, não deve surpreender. Só o invoco para mostrar como 40 anos depois este quixotismo, na tradição da utopia socialista e do utopismo que nele deverá sempre existir para merecer este este título, nos é interdito. Nos interditos sobre a forma sergista. O futuro não confirmou a visão otimista de Sérgio, sobretudo sobre aquela que se visava em termos de coletivização. Esse futuro foi o da dificuldade, aparentemente insanável, de a levar a cabo como imperativo socialista sem destruir aquilo que no socialismo é exigência de liberdade concreta, coletiva sem dúvida um coletivismo de indivíduos - que era aliás aquela que Sérgio imaginava. Não, não era fácil atravessar com a lança os muros da realidade capitalista moderna, mesmo da nossa tão fraca. O capitalismo encontraria não apenas uma capacidade de renovação como de intensificação de sua energia, hipótese impensável para a geração de Sérgio. Esse capitalismo deu origem a um discurso de justificação refinado, sem complexos, da sua própria prática enquanto prática liberal, como se o autor do método Coué, em pessoa, tivesse encarnado, não só nos Friedman e Hayek que o repensaram, como nos yuppies que deles vivem. O seu discurso tornou-se o discurso implícito de uma prática económica do homem da rua ocidental que joga na Bolsa como se fosse um émulo de Rothschild.
Inacreditável evolução, ou revolução sem aspas ou com elas, numa sociedade capitalista que vive em tempo real a euforia de uma coletividade e quando calha a sua disforia, quando de súbito a grande máquina capitalista, já sem capitalistas dentro, se auto-desregulariza? Que o preço desse sucesso dos micro-processadores, seja como na antiga alegoria de Petrarca El Triunfo de lá Muerte, um chão juncado de desempregados, zonas inteiras sinistradas por obsolescência de produtos de ponta criados por robôts desse universo, perto do qual Dallas é uma Disneylândia, não obsta a que a visão liberal impere e se comemore como puro produto de fatalidade e dos deuses do progresso. Também para essa visão liberal se invoca o celebrado “sentido da História”. Só que, agora, esse sentido da História se conjuga bem com o seu oposto, que a sua teoria é uma epistemologia do Caos, do Caos como a expressão original da liberdade. É o que permite a uma grande parte da inteligentsia do Ocidente de sintonizar hoje com aquilo que há 50 anos lhe faria horror. Tal é o nosso presente ou a parte mais visível da sua máquina de produção em segundo e terceiro grau, e por ser como é, impõe à cultura socialista, e mesmo ao socialismo como cultura, o dever de imaginar uma contra resposta adequada ao desafio liberalista bem mais audaciosa e comportando mais riscos, que a do tempo de António Sérgio. Não haverá futuro, em todo o caso, futuro que seja modelado por uma visão e uma intenção que mereça chamar socialismo sem que concretamente se encontre uma resposta, um discurso para pensar este mundo económico, este tipo de existência ultra-capitalista cujo modelo, efeitos e ressonâncias, afetam hoje o planeta inteiro e até o ultrapassam, pois nunca os homens investiram mais no futuro do que nós, próximos colonizadores de galáxias.
A grande tentação, na prática tem já milhares de exemplos, é de ficar fascinados por esse sucesso objetivo, por esta estrutura, aparentemente conforme, à vontade de renovação e de poderio de uma ordem social imperativa, deixando ao socialismo um futuro de mero eco moral sempre em atraso, confinando-o numa lamentação piedosa diante de catástrofes económicas ou sociais inscritas como tributo na conta do Progresso, como nos melhores dias do século XIX. Outra é a de encontrar um espaço dentro do mesmo universo, uma adaptação a ele que lhe modere o ritmo e a finalidade implacável, em suma, que o humanize. É uma herança da esquerda europeia, sempre que o ocupou ou foi poder, ao serviço de uma ideia da cultura humanista, instância nobre, reguladora e espaço idealizado da aventura humana que infelizmente, na sua realidade mais trivial, é atroz e sem cura. Por isso não poderá ser através desta figura da cultura enquanto expressão de uma racionalidade que por si mesma seria fator de equilíbrio, de ordem, de justiça, etc., que o combate pelo socialismo pode hoje ser travado quando vemos toda uma literatura ou o mesmo liberalismo como cultura, ter a audácia de convocar a mais alta tradição crítica do Ocidente para ajudar a vender os seus produtos. O carácter recuperador do que apetece apelidar de Capitalismo Cultural é uma evidência. Já o pusera à prova domesticando a prática subversiva da arte moderna, assimilando-a títulos de bolsa mais rendosos e mais nobres do que eles. Afirma Mercedes Benz, por exemplo, utiliza as grandes sombras de Espinosa, de Descartes ou de Leibniz, para sobre vender enobrecer os seus, aliás maravilhosos, produtos (dizem, que eu não tenho meios para realmente experimentar). Tal como a Imprensa que ecoa essa euforia liberal e se auto-proclama inteligente como Einstein, e que do seu ponto de vista, tirando a pretensão, talvez o seja.
O que é possível fazer para preparar um futuro socialista neste instante em que um mensário francês, intitulado O Liberal, confessa, estático e feliz, que para que as novas gerações realistas, filhas do seu tempo, Wall Street substitui Katmandu? Os lemas novos são: ganhar, avançar, triunfar, ser o ator de uma “performance”, como afirmação da plenitude de si. Não é fácil resistir a este canto de sereia do neo-individualismo contemporâneo, indiferente a qualquer transcendência ética, em uníssono com o produto sofisticado que justifica e alimenta o fluxo sem sujeito da nova produtividade hiper-capitalista, enfim, liberta dos fantasmas repressivos, ascéticos, herdados de vários milénios de judeu-cristianismo. Mon désir, como dizem os renascentistas, critério supremo e meio de liberdade, valor de referência da cultura humanística de esquerda passou a ser cobertura - ouro do liberalismo económico, para quem o único conteúdo do conceito de liberdade, é o de conquistar para si o exclusivo no mercado. A cultura liberal reivindica até a antiga subversão, como por exemplo, a revolta situacionista, o Maio de 68 contra a ordem capitalista Ocidental, como expressão da liberdade individual, como paradigma da independência de que hoje devem fazer gala os grandes empreendedores, vendedores, criativos, etc. Não há nenhum órgão de influência até de “esquerda” que não se regozije com o nascimento deste novo espaço de prazer e de liberdade, tão outro que o do tempo dos grandes temores dos anos 60, pânico diante do desenvolvimento anárquico de produção, apologia do crescimento zero pelo Clube Roma, temor do apocalipse nuclear, etc. Em suma, o instante Ocidental está cheio como um ovo do gozo do seu próprio sucesso. Um signo entre outros: em plena agitação estudante em França, no Outono de 86, a empresa Juniores manteve o seu Congresso em La Villette e anunciou 60 milhões de francos de benefícios. No future. O futuro é aqui.
E em Portugal? A situação particular nossa, o facto de que enquanto expressão política, o projeto socialista em Portugal possa ainda ser vivido como um certo optimismo, embora diverso do de Sérgio, é mais fácil de assumir do que na restante Europa (ao menos na sua mera elocução), torna menos oprimente esta deprimente euforia Ocidental do neoliberalismo. Mas seria de uma cegueira culposa não perceber que esse neoliberalismo e a cultura que o exprime e por sua vez os justifica no plano da polémica, da publicidade, da sociabilidade, são mais um dos meus fantasmas de estrangeirado à força. A realidade é que a ideia mesma de Socialismo e a Cultura e o discurso clássicos que o justificavam que está em crise.
Para ter futuro, não como mera expressão na ordem política, democrática, o socialismo terá como obrigação primeira reinventar um novo discurso cultural, revisitar seriamente o seu imaginário, que entre nós, ainda o protege, aparentemente, do fascínio do discurso pseudo-liberal. Não é tarefa de eleitos, mas de todos que sabem, sem ser de ciência certa, que há na ideia e no projeto socialista - qualquer que seja o desmentido brutal das suas versões utópicas - uma exigência, uma Verdade que nem é mais gritante eficácia do ultra-capitalismo planetário consegue ocultar. Debaixo das pedras da rua, a praia, diziam os estudantes de 68. Debaixo da fachada rutilante numa sociedade que exclui e remete para o nada social uma fração inumerável da comunidade humana, não descobrimos praia nenhuma. Mas tão só o espectáculo duma sociedade dividida entre a euforia dos conquistadores yuppies e as suas vítimas, mesmo se estas recebem desse universo rutilante algumas migalhas de sonho que lhe permitem imaginar que estão ainda dentro do círculo iluminado.
Para os que acham simplesmente ética esta conclusão, não tenho resposta a dar. O socialismo é a ética social em ato ou não é nada. Estou certo de pouca coisa, mas não duvido de que o futuro para o socialismo ou se alimenta dessa convicção e das consequências práticas que dela relevam ou sucumbirá, convertendo-se numa legenda sem leitura e sem leitores.
O texto segue a grafia original publicado na Finisterra nº1
no. 02 // julho 2021
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FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
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