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FILIPE NUNES
é licenciado em sociologia pelo ISCTE e doutorado em ciências sociais pelo ICS/UL. Exerceu vários cargos de assessoria em gabinetes ministeriais, na Câmara Municipal de Lisboa e na Assembleia da República. Foi docente em pós-graduações no ISCTE e Universidade Nova e é autor de vários artigos sobre elites, partidos políticos e história das ideias políticas. Esteve ligado ao IPRI/UNL e ao IPPS/ISCTE. Pertence ao quadro do Instituto da Defesa Nacional. Está atualmente destacado na Missão Permanente de Portugal em Genebra, onde exerce funções de conselheiro técnico principal.


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OITO IDEIAS FEITAS
​SOBRE AS LEGISLATIVAS DE 2022 

Filipe Nunes

Enquanto esperamos por estudos pós-eleitorais mais aprofundados, os dados de algumas sondagens divulgadas a seguir às últimas legislativas e os resultados territoriais/agregados ajudam-nos a questionar algumas ideias feitas que foram uma vez mais repetidas antes e depois do dia 30 de janeiro. 

As sondagens voltaram a enganar-se

Nas últimas seis legislativas, as sondagens publicadas na semana anterior ao dia das eleições conseguiram sempre antecipar o resultado final. Historicamente, os resultados dos nossos centros de sondagens comparam, aliás, muito bem com os dos seus congéneres europeus. O que se passou desta vez? Em primeiro lugar, se olharmos para a média das sondagens, atualizada diariamente pela Rádio Renascença (“a sondagem das sondagens”), verificamos que o PS esteve sempre à frente do PSD e o somatório da esquerda sempre à frente do da direita. Nunca foi provável uma vitória do PSD ou mesmo uma maioria de direita. Mais: os resultados da tracking poll da TVI, que mede tendências, foram bastante mais favoráveis ao PS na segunda semana de campanha do que na primeira. Tudo indica, pois, que desta vez a dinâmica da campanha eleitoral fez a diferença: quase um quarto dos eleitores diz ter sido influenciado por sondagens no momento de votar; quase um terço terá decidido o seu sentido de voto na última semana; e um quarto dos indecisos que tencionavam votar PSD terão mudado de ideias à última hora. Uma sondagem é mesmo isso: o retrato de um momento.    
 
As campanhas de António Costa são sempre péssimas

Esqueçamos Loures em 1993, Lisboa em 2013 e até Lisboa em 2009 (uma campanha com algumas semelhanças com a de 2022: forte bipolarização vs Santana Lopes e penalização do BE pela atitude face a José Sá Fernandes). Realmente as campanhas de 2015 e 2019 deixaram algo a desejar, considerando as expectativas e o contexto económico.

Desta vez, tudo se encaminhava para que estas eleições funcionassem como um referendo a António Costa. Mas a campanha do PS conseguiu transformar estas eleições num referendo a Rui Rio, especialmente na reta final da campanha: um referendo às contradições do seu programa social (gratuitidade e universalidade do SNS, sistema público de segurança social) e da sua política de alianças (ambiguidade em relação ao Chega).  O PS aproveitou todos os erros do adversário e corrigiu a tempo o erro de pedir a maioria absoluta, que ninguém esperava (e que a maioria não desejava) e que o colocava no espaço mediático como o partido da ingovernabilidade.

As campanhas ditas “negativas” têm má imprensa, os eleitores dirão sempre que não gostam e nenhum político assumirá alguma vez esse caminho. Mas as emoções contam muito na hora do voto. O medo pesa, especialmente quando assenta em bases credíveis. A história eleitoral está cheia de exemplos que apontam neste sentido. A direita tem trabalhado melhor o escrutínio dos adversários, especialmente nos EUA e no Reino Unido. Tem trabalhado melhor os dados e as redes sociais. Acontece que houve agora um partido de esquerda que se saiu melhor nessa frente. Um caso que, com as devidas distâncias (e diferenças), merecia mais atenção da parte dos socialistas europeus.   
 
As eleições ganham-se com os votos do centro

Há 20 anos que o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa publica estudos pós-eleitorais no âmbito do projeto Comportamento Eleitoral dos Portugueses. Há 20 anos que sabemos que os resultados eleitorais se jogam na mobilização diferenciada dos campos políticos e dos partidos. Mas há 20 anos que continuamos a ouvir que as eleições se ganham através da captação de um mítico centro eleitoral. É óbvio que a mobilização de uma base eleitoral alargada depende de uma agenda moderada e pragmática (especialmente à esquerda) e depende muito da avaliação do grau de erosão e do desempenho do governo em cada momento (que continuava em 2022 em níveis ainda positivos, embora aquém de 2019). Contudo, o sucesso eleitoral de um partido como o PS dependerá sempre muito mais da desmobilização do eleitorado potencial do PSD do que da captação (muito mais marginal) de votos oriundos da direita. E foi certamente isso que sucedeu desta vez: mobilização máxima da base potencial do PS (superior à de 2019 provavelmente), em virtude da dramatização da campanha (com SNS e Chega à cabeça), a que se juntou algum voto útil à esquerda e uma desistência de última hora de indecisos mais inclinados a votar PSD.    

A esquerda ou sobe toda ou desce toda

É verdade que um clima de rutura e tensão entre as forças de um determinado campo pode gerar desmobilização por parte dos seus eleitores. Era justamente esse o risco do discurso da maioria absoluta por parte do PS: instalava-se a ideia de que afinal o PS não conseguia falar com ninguém. E é verdade também que em 2005 e em 2015 ou 2019 (para não ir mais atrás) a subida do PS foi acompanhada por uma subida do BE e por uma estabilização do PCP (estamos a falar de legislativas).

Mas temos também o contraexemplo de 2009, nas autárquicas de Lisboa, em que o BE é penalizado pela posição sectária face à abertura de Sá Fernandes para negociar. Mesmo nas legislativas de 2009, num cenário europeu de crise financeira a abrir caminho à ascensão do populismo de esquerda (Podemos, Syriza, 5 estrelas, Corbyn, Melenchon), o escrutínio das propostas do BE nos debates eleitorais foi decisivo para conter nessa altura a radicalização da esquerda e uma subida do BE aos dois dígitos que as sondagens chegaram a antecipar.

Esse escrutínio repetiu-se desta vez e uma parte muito significativa do eleitorado potencial do BE respondeu favoravelmente, votando no PS em vez de se abster. A responsabilidade pela rutura à esquerda não foi nem podia ser o centro da campanha do PS mas ela era clara desde o início, mais clara até do que em 2011. Foi porventura a falta desse escrutínio à sua esquerda que levou à fragmentação e à derrota do PS em Lisboa, no final de 2021, quando o BE decidiu concorrer contra Medina após 4 anos de governação em comum, apesar de saber perfeitamente como funciona o sistema eleitoral autárquico.  
 
O BE tem a vida mais facilitada que o PCP

Já todos percebemos que a situação em que se encontra PCP é pouco invejável. O partido que nasceu na sequência de uma pandemia parece estar em fase terminal na sequência de outra pandemia, cem anos depois. E a posição sobre a Ucrânia não vai ajudar. Tudo indica que a erosão é estrutural, tendo chegado agora a vez de o partido ser atingido em legislativas (quando nessas eleições se mantinha estável há 20 anos na casa dos 6%-7%). Conseguirá a influência sindical, à boleia das crises cíclicas do capitalismo, reverter esta erosão, ou vai, pelo contrário, acelerá-la?

Sem esta implantação sindical mas com um eleitorado potencial mais alargado, a posição do BE também não é propriamente confortável. Parece haver desde o início do partido um desfasamento que já tem sido notado entre um núcleo dirigente bastante radical (ainda que com diferenças importantes entre si) e um eleitorado potencial mais aberto a entendimentos com o PS. Como vimos atrás, já outros resultados eleitorais haviam indiciado os efeitos negativos que podem surgir desse desfasamento. Resta saber até que ponto haverá margem para uma nova reconciliação eleitoral se a linha sectária prevalecer na direção do BE e se o Livre, de regresso ao parlamento, conseguir ocupar o espaço de uma esquerda útil à governação.

Seja como for, o PS é parte (muito) interessada neste debate. O resultado eleitoral confirmou o que as sondagens já antecipavam: um crescimento do voto agregado da direita, que se traduziu numa redução para cerca de metade na vantagem do somatório da esquerda que vinha de 2019. Metade dos jovens votaram à direita. Ora, se em 2022 o PS já não consegue ir a todas (veja-se as dificuldades com eleitorado mais jovem ou qualificado), imagine-se em 2026 quando estiver já com 10 anos seguidos de governação… 
 
O PSD perdeu os setores mais dinâmicos da sociedade

Vários críticos da direção de Rui Rio repetiram esta ideia. É uma explicação sempre apelativa nestes momentos de derrota, mas que, face ao que se sabe, parece completamente desfasada da realidade. Desde 2015 que o PSD é mais competitivo do que o PS nos eleitores com menos de 25 anos e especialmente entre os mais instruídos. Apesar da diferença nacional entre PS e PSD estar acima dos 10 pontos, entre os eleitores com formação superior 36% votaram PSD e só 31% votaram PS. Se há algum partido que tem um problema com os chamados «setores dinâmicos» é o PS.

Em contraste com outros partidos socialistas europeus (talvez com exceção do PSOE), o PS tem hoje uma base fortemente popular, típica dos partidos de massa de esquerda no pós-guerra, mas revela uma dificuldade crescente em entrar no eleitorado mais qualificado dos centros urbanos – daí talvez as derrotas nas autárquicas em várias capitais de distrito. Este último é obviamente um eleitorado com mais visibilidade social e influência política/mediática, cujo afastamento poderá trazer dificuldades à governação do PS, mesmo num cenário de maioria absoluta.

O grande desafio do PS nestes quatro anos é tentar reconciliar-se com estes eleitores sem hostilizar a sua base popular. É uma verdadeira quadratura do círculo, se pensarmos que os recursos são limitados e os interesses contraditórios. E é também um esforço que até pode ser em vão, se pensarmos por exemplo que, na Câmara de Lisboa, o investimento em políticas amigas do empreendedorismo foi insuficiente para o PS se reconciliar com estes setores mais jovens e qualificados. Não é de descartar a hipótese deste afastamento ter a sua origem na imagem de partido associado ao “sistema” e à “corrupção”, temas salientes para estes segmentos da opinião pública, a par da questão do “crescimento económico anémico” e da emigração dos jovens mais qualificados – que também não favorece o PS. A saliência destes temas já foi maior nesta campanha de 2022 e tem tendência a crescer. Será muito por aqui que o desempenho do PS vai ser avaliado no espaço público.

Já o caminho que o PSD tem de percorrer é precisamente o oposto: ir ao encontro das classes populares, e especialmente dos mais velhos e dos funcionários públicos, que são também aqueles que mais participam eleitoralmente.
     
A estratégia de Rui Rio estava completamente errada

Tudo aponta para que o “troikismo” do governo de Passos e Portas tenha cavado clivagens profundas na sociedade portuguesa que perduram até hoje. Novos contra velhos (a quem foram cortadas pensões de reforma); trabalhadores do privado contra os do setor público; classes médias baixas contra os mais pobres dos pobres. A perceção que existe desde essa altura, especialmente entre pensionistas e funcionários públicos, é que PSD e CDS receberam o programa de ajustamento de braços abertos e que até quiseram ir além dele. Em vésperas da intervenção externa, o PSD tinha aliás apresentado um projeto de revisão constitucional nessa linha.

Face ao que se conhece da sociedade portuguesa e do comportamento eleitoral (mais ativo) de idosos e funcionários públicos, é evidente que uma estratégia deste tipo dificilmente pode ser maioritária. Fez, portanto, todo o sentido Rui Rio demarcar-se da herança de Passos Coelho, procurando “recentrar” o PSD. A questão é que pouco importa afastar os responsáveis do “passismo” e dizer que se está “ao centro”, quando ao mesmo tempo se faz um acordo com a extrema-direita nos Açores ou quando se apresentam projetos de revisão constitucional que apontam para o fim do acesso tendencialmente universal e gratuito ao SNS. Acertou no posicionamento estratégico mas falhou completamente na tática usada.

É perfeitamente possível o PSD voltar a reconciliar-se com os pensionistas e com os funcionários públicos (especialmente com os mais qualificados). Os partidos reinventam-se e os eleitorados acompanham essas mudanças. Depois de anos de austeridade (Cameron), em 2019 Boris Johnson conseguiu que o mesmo partido conservador entrasse nos bastiões do partido trabalhista, com um ambicioso programa de investimentos públicos. Mas para o PSD conseguir isso vai ter de trabalhar mais e melhor do que em 2022. O sucesso da experiência governativa em Lisboa vai ser essencial enquanto montra de um possível Governo nacional do PSD. 
 
A Iniciativa Liberal e o Chega são criaturas de Rui Rio

Foram inúmeros os erros táticos de Rui Rio, alguns referidos atrás. Mas é injusto atribuir apenas a Rio responsabilidades pelo crescimento da IL ou do Chega ou achar que a IL e o Chega vão desaparecer com uma nova liderança do PSD posicionada mais à direita. (Ao olhar para a distribuição dos votos da IL não é aliás de excluir que em muitos círculos alguns dos seus potenciais eleitores tenham acabado por votar útil no PSD.)

É sempre difícil travar o crescimento de forças políticas novas – o PS sentiu isso com o BE na primeira década deste século. Além disso, a IL e o Chega têm rostos que foram promovidos nos media de direita e nos próprios partidos da direita democrática. Foram legitimados pelo próprio PSD. O que vimos agora foi o resultado eleitoral de um processo cultural mais longo, de radicalização da direita, que passou pela tabloidização da comunicação social, pela futebolização da televisão e que encontrou agora os protagonistas para o representar eleitoralmente.

Se na sequência da crise financeira de 2008, assistimos a uma radicalização da esquerda (Syriza, Podemos, Corbyn, Sanders, Melenchon; BE+PCP na casa dos 20%), desde pelo menos a eleição de Trump em 2017 temos vindo a assistir a uma radicalização da direita um pouco por todo o lado. Esta radicalização da direita não é historicamente nova e surge com uma motivação não apenas socio-económica mas também cultural, certamente associada ao justo reconhecimento de direitos das mulheres e das minorias sociais. Assenta numa espécie de darwinismo social, que mistura agenda anti-imigração com um programa de redução das funções sociais do Estado. As falsificações da desclassificação social e do grand remplacement estão a gerar adesão em todo o mundo ocidental. Não será por acaso que o Chega atrai mais homens do que mulheres; e não será por acaso que a direita atrai hoje mais jovens do que a esquerda – já que estes sentem que a esquerda é hoje o “mainstream”, o tal “sistema”, sentimento que alimenta toda esta contracultura de direita.

Talvez as mudanças no ambiente internacional venham a penalizar a extrema-direita europeia. Ainda é cedo para perceber isso. À partida, o Chega parece mais enraizado que a IL. (De resto, não é certo que a IL não tenha sido vítima de algum voto útil no PSD, que apesar de tudo subiu mais de 100 mil votos.) As raízes do Chega vão muito para lá de Rui Rio. Responder a este desafio não vai ser tarefa fácil. Mas se se apropriar da agenda da extrema direita, o PSD comete um erro grave que degrada a democracia e que tem saído caro ao PP espanhol e à direita republicana francesa, para citar apenas exemplos mais próximos. Pelo contrário, a estratégia alemã (CDU) do cordão sanitário tem conseguido conter o crescimento da AfD.

O Chega chega onde a direita democrática não chega: aos estratos intermédios, que completaram o ensino secundário, mas que se sentem abandonados (nos seus territórios, nas suas vidas profissionais, na comparação com os beneficiários de prestações sociais). Neste sentido, ao ir buscar votos também à abstenção, o Chega aparentemente soma à direita. Soma eleitoralmente, mas diminui politicamente uma direita democrática que o reconheça como interlocutor. 
PS: Para este artigo beneficiei bastante da leitura de alguns artigos e podcasts que recomendo vivamente:
https://www.publico.pt/2022/02/19/opiniao/opiniao/discursos-superficie-1996074
https://setentaequatro.pt/ensaio/vai-ficar-tudo-bem
https://www.pedro-magalhaes.org/bases-sociais-do-voto-nas-legislativas-de-2022/
https://expresso.pt/podcasts/perguntar-nao-ofende/pedro-magalhaes-ics-iscte-sondagens/
https://observador.pt/especiais/legislativas-como-se-construiu-o-novo-mapa-cor-de-rosa/
   
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​número 03 // julho 2022
no. 03 // julho 2022
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