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FERNANDO ROCHA ANDRADE Fernando Rocha de Andrade é doutorado em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Económicas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É docente desta Faculdade desde 1995, tendo atualmente a categoria de Professor Auxiliar e lecionando disciplinas de Finanças Públicas e Direito da Economia. Foi deputado à Assembleia da República, eleito pelo círculo de Aveiro, na XIII legislatura (2015-2019). Integrou o Governo por duas vezes, como Sub-secretário de Estado da Administração Interna (2005-2007) e como Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (2015-2017). É membro do Conselho de Administração da Fundação Res Publica. Tem diversas obras publicadas nas áreas da fiscalidade e das finanças públicas. ________________________________ |
FLAT TAX: |
RESUMO No contexto de propostas de introdução na tributação do rendimento em Portugal de um modelo de flat tax, procura-se explicar em que consiste tal modelo de imposto e quais os seus efeitos na receita, na distribuição do encargo fiscal e na complexidade do imposto. Conclui-se que os ganhos de simplicidade não são significativos porque a complexidade do imposto não decorre do sistema de taxas progressivas. A proposta existente – taxa de 15% e dedução fixa de 9.000 euros – não assegura a neutralidade fiscal, implicando uma grande perda de receita e uma significativa redução da progressividade. Os ganhos vão sobretudo para os 4% de contribuintes de maiores rendimentos. ABSTRACT Given the proposals to replace current income taxation in Portugal with flat tax, we seek to explain what a fat tax model is and its effects on revenue, the distribution of the tax burden and the complexity of taxation. We conclude the gains in simplicity are not significant because the complexity of the tax does not reside in the system of progressive rates. The existing proposal – a rate of 15% and a fixed deduction of 9,000 euros - does not guarantee fiscal neutrality, implying a great loss of revenue. There is also a reduction of tax progressivity – the gains are heavily concentrated on the 4% highest earners. |
Recentemente, a velha proposta de Flat Tax regressou ao debate político em Portugal por via de propostas publicamente anunciadas da Iniciativa Liberal e do Chega.
Sabemos que o flat tax (que pode ser traduzido por “imposto plano” ou, como preferimos, “imposto chato”) é um modo de tributação do rendimento pessoal que diminui consideravelmente a progressividade dos atuais regimes, porque a sua taxa única (que é a taxa marginal) é muito mais baixa que as taxas marginais atualmente aplicadas aos rendimentos mais elevados.
A sua defesa envolve geralmente 3 mistificações: dizer que é mais simples; comparar dois sistemas com resultados de receita muito diferentes; e esconder quem são os grandes beneficiados. Alguns dos seus proponentes mais aventureiros insistem também que estas reduções de impostos têm tais efeitos benéficos sobre a economia que se pagam a si próprias.
O presente artigo destina-se a explicar em que consiste um flat tax e a tentar fazer incidir alguma luz sobre estes cantos escuros da proposta. Como é formulada, ela representa uma redução da receita de alguns milhares de milhões de euros, pelo que uma discussão completa não poderia ignorar a pergunta que logo se coloca para a política orçamental – onde se corta na despesa num valor correspondente? No presente texto, focamo-nos apenas no lado fiscal da questão, sem deixar de considerar que esse outro aspeto não é menos importante.
1. O que é o Flat Tax?
Designa-se por flat tax um imposto sobre o rendimento que é um modelo alternativo quer ao comprehensive income tax (imposto progressivo, único e global sobre o rendimento) quer ao dual income tax (imposto que tem taxas progressivas para alguns rendimentos, designadamente trabalho e pensões, e uma taxa fixa para outros, designadamente rendimentos patrimoniais). O sistema do atual IRS é essencialmente um dual income tax, porque tem taxas progressivas nos rendimentos sujeitos a englobamento, e uma taxa única de 28% para a generalidade dos rendimentos patrimoniais (prediais, de capital e mais-valias), que estão dispensados do englobamento.(1)
Um flat tax puro é um imposto proporcional: independentemente do rendimento, cada um paga uma taxa média equivalente à taxa única. Claro que ninguém defende um flat tax puro, porque isso representaria um enorme aumento de impostos para a maioria das pessoas e sobretudo para os rendimentos mais baixos. O que é geralmente apresentado é um flat tax com uma dedução. Assim, por exemplo, se tivermos um flat tax com uma taxa de 15% e dedução fixa de 7.000€ e o aplicarmos a dois contribuintes com rendimentos de 20.000 e de 40.000 euros, temos
(20.000-7.000) x 0,15=1.950 Taxa efetiva: 9,75%
(40.000-7.000) x 0,15=4.950 Taxa efetiva: 12,38%
Um flat tax com uma dedução fixa é assim um imposto progressivo (tecnicamente, fala-se em “progressão por dedução”). A taxa marginal é fixa, mas as taxas efetivas são crescentes com o rendimento, e tendem para a taxa marginal, sem nunca a atingir. Para ser politicamente apelativo, o flat tax tem de ter simultaneamente uma dedução considerável, uma taxa baixinha – e uma grande perda de receita.
A proposta mais famosa de flat tax é a que foi elaborada por Hall e Rabushka (1985), que incluía não só a taxa marginal única e a dedução fixa inicial, mas também a isenção de tributação do rendimento investido e a eliminação da generalidade das deduções ao rendimento constantes da tributação americana do rendimento pessoal.
2. A simplicidade
É um equívoco considerar que no nosso IRS a complexidade – e designadamente a complexidade das declarações de rendimentos – resulta da presença das taxas progressivas. Desde logo, a liquidação do imposto (momento em que são aplicadas estas taxas) nem sequer consta das declarações de rendimentos. A complexidade destas declarações nada tem a ver com a sua taxa progressiva, resulta antes das regras de apuramento do rendimento ou o tratamento de certos rendimentos e despesas:
Sabemos que o flat tax (que pode ser traduzido por “imposto plano” ou, como preferimos, “imposto chato”) é um modo de tributação do rendimento pessoal que diminui consideravelmente a progressividade dos atuais regimes, porque a sua taxa única (que é a taxa marginal) é muito mais baixa que as taxas marginais atualmente aplicadas aos rendimentos mais elevados.
A sua defesa envolve geralmente 3 mistificações: dizer que é mais simples; comparar dois sistemas com resultados de receita muito diferentes; e esconder quem são os grandes beneficiados. Alguns dos seus proponentes mais aventureiros insistem também que estas reduções de impostos têm tais efeitos benéficos sobre a economia que se pagam a si próprias.
O presente artigo destina-se a explicar em que consiste um flat tax e a tentar fazer incidir alguma luz sobre estes cantos escuros da proposta. Como é formulada, ela representa uma redução da receita de alguns milhares de milhões de euros, pelo que uma discussão completa não poderia ignorar a pergunta que logo se coloca para a política orçamental – onde se corta na despesa num valor correspondente? No presente texto, focamo-nos apenas no lado fiscal da questão, sem deixar de considerar que esse outro aspeto não é menos importante.
1. O que é o Flat Tax?
Designa-se por flat tax um imposto sobre o rendimento que é um modelo alternativo quer ao comprehensive income tax (imposto progressivo, único e global sobre o rendimento) quer ao dual income tax (imposto que tem taxas progressivas para alguns rendimentos, designadamente trabalho e pensões, e uma taxa fixa para outros, designadamente rendimentos patrimoniais). O sistema do atual IRS é essencialmente um dual income tax, porque tem taxas progressivas nos rendimentos sujeitos a englobamento, e uma taxa única de 28% para a generalidade dos rendimentos patrimoniais (prediais, de capital e mais-valias), que estão dispensados do englobamento.(1)
Um flat tax puro é um imposto proporcional: independentemente do rendimento, cada um paga uma taxa média equivalente à taxa única. Claro que ninguém defende um flat tax puro, porque isso representaria um enorme aumento de impostos para a maioria das pessoas e sobretudo para os rendimentos mais baixos. O que é geralmente apresentado é um flat tax com uma dedução. Assim, por exemplo, se tivermos um flat tax com uma taxa de 15% e dedução fixa de 7.000€ e o aplicarmos a dois contribuintes com rendimentos de 20.000 e de 40.000 euros, temos
(20.000-7.000) x 0,15=1.950 Taxa efetiva: 9,75%
(40.000-7.000) x 0,15=4.950 Taxa efetiva: 12,38%
Um flat tax com uma dedução fixa é assim um imposto progressivo (tecnicamente, fala-se em “progressão por dedução”). A taxa marginal é fixa, mas as taxas efetivas são crescentes com o rendimento, e tendem para a taxa marginal, sem nunca a atingir. Para ser politicamente apelativo, o flat tax tem de ter simultaneamente uma dedução considerável, uma taxa baixinha – e uma grande perda de receita.
A proposta mais famosa de flat tax é a que foi elaborada por Hall e Rabushka (1985), que incluía não só a taxa marginal única e a dedução fixa inicial, mas também a isenção de tributação do rendimento investido e a eliminação da generalidade das deduções ao rendimento constantes da tributação americana do rendimento pessoal.
2. A simplicidade
É um equívoco considerar que no nosso IRS a complexidade – e designadamente a complexidade das declarações de rendimentos – resulta da presença das taxas progressivas. Desde logo, a liquidação do imposto (momento em que são aplicadas estas taxas) nem sequer consta das declarações de rendimentos. A complexidade destas declarações nada tem a ver com a sua taxa progressiva, resulta antes das regras de apuramento do rendimento ou o tratamento de certos rendimentos e despesas:
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Para apuramento do rendimento é necessário contabilizar as despesas que são dedutíveis ao rendimento bruto – por exemplo o IMI e as despesas de condomínio nos rendimentos prediais, as despesas da atividade nos rendimentos profissionais e empresariais;
Alguns rendimentos ou despesas têm tratamentos preferenciais: há rendimentos que têm benefícios fiscais, como as mais valias imobiliárias obtidas em áreas de reabilitação urbana; há despesas que são deduzidas à coleta, como as despesas de saúde e educação. |
É verdade que estas regras podem ser melhoradas no sentido da simplificação. Mas também é verdade que a passagem para um flat tax, só por si, nada muda nestas regras. A mudança da taxa de tributação não altera as regras de determinação do rendimento, não revoga os benefícios fiscais e não elimina as deduções à coleta. Sabemos aliás da história que, quando as propostas de flat tax são acompanhadas de eliminação de regimes preferenciais presentes na lei em vigor, isso aumenta a resistência política à mudança.(2)
Se não for acompanhado por propostas relativas a estes outros aspetos da tributação do rendimento, a introdução do flat tax não alivia nem uma grama do peso burocrático do IRS.
3. Sistema de tributação e nível de tributação
Para compararmos a justiça de dois sistemas e o seu impacto dos contribuintes individuais, devíamos comparar dois sistemas capazes de gerar a mesma receita. De outra forma, estamos a misturar efeitos que resultam do sistema de tributação com os que resultam do nível de tributação.
A Iniciativa Liberal estima que com a sua proposta (com uma taxa marginal de 15%) a perda de receita será de cerca de dois mil milhões de euros. Acho a conta irrealista (por muito otimista) mas não é possível fazer as contas sem ter todas as peças do puzzle. Na verdade, não é possível estimar a perda de receita sem esclarecer o que acontece a outros aspetos do imposto, designadamente
Se não for acompanhado por propostas relativas a estes outros aspetos da tributação do rendimento, a introdução do flat tax não alivia nem uma grama do peso burocrático do IRS.
3. Sistema de tributação e nível de tributação
Para compararmos a justiça de dois sistemas e o seu impacto dos contribuintes individuais, devíamos comparar dois sistemas capazes de gerar a mesma receita. De outra forma, estamos a misturar efeitos que resultam do sistema de tributação com os que resultam do nível de tributação.
A Iniciativa Liberal estima que com a sua proposta (com uma taxa marginal de 15%) a perda de receita será de cerca de dois mil milhões de euros. Acho a conta irrealista (por muito otimista) mas não é possível fazer as contas sem ter todas as peças do puzzle. Na verdade, não é possível estimar a perda de receita sem esclarecer o que acontece a outros aspetos do imposto, designadamente
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Mantém-se a dedução específica nos rendimentos do trabalho dependente e de pensões, que atualmente se traduz numa discriminação positiva destes rendimentos, ou a dedução é consumida pela isenção inicial que é proposta?
Mantém-se a dedução das contribuições para a segurança social aos rendimentos do trabalho (que substitui a dedução específica para rendimentos superiores a sensivelmente 40.000 € anuais)? Mantêm-se as deduções à coleta que o código do IRS prevê, designadamente as mais significativas, por número de filhos, despesas gerais familiares, despesas de saúde, despesas de educação e rendas de habitação própria? |
Não é crível que a perda de receita seja apenas de dois mil milhões se à dedução inicial proposta pela Iniciativa Liberal se somar a manutenção de todos estes aspetos de alívio da tributação presentes no nosso IRS (especialmente em benefício dos rendimentos do trabalho).
Todavia, e ainda que a perda de receita fosse de dois mil milhões, então a comparação séria a fazer – se pretendemos comparar sistemas – é entre esta proposta de flat tax e o nosso IRS progressivo com uma redução de taxas que baixasse a sua receita em dois mil milhões; ou uma redução de outros impostos ou contribuições que baixasse a receita em dois mil milhões.
Em síntese, se tiramos dois mil milhões à receita, a questão é se esta é a melhor forma e o fazer.
4. Flat tax e distribuição do encargo fiscal
Para determinar quem é que ganha com esta redução de imposto, podemos recorrer às estatísticas da receita fiscal, cujo último ano disponível é 2017. A comparação é dificultada porque o IRS desse ano tinha menos escalões e taxas em média mais altas, mas ainda assim podemos extrair conclusões interessantes.
Com um flat tax com deduções como as que são propostas, o imposto não mudaria muito para 90% dos agregados familiares. Cerca de metade (46%) não paga hoje qualquer IRS – ou porque não tem rendimentos que determinem o pagamento durante o ano ou porque, por efeito das deduções, tem um reembolso equivalente ao que pagou. Um flat tax com dedução fixa poderia manter este panorama.
Desde a taxa zero, que é então a taxa efetiva de 46% dos agregados, até ao topo do atual 3º escalão, a taxa efetiva vai subindo, como iria subindo com o flat tax. O ritmo dessa subida varia com as condições concretas do agregado familiar (depende do número de filhos e das deduções). Em 2017, nos dois primeiros escalões (correspondentes aos 3 primeiros escalões da tabela atual) a taxa efetiva do IRS foi em média de 1,9% no primeiro escalão e de 10,5% no segundo. Até este ponto (topo do antigo segundo escalão) temos 88,5% dos agregados familiares, que não têm grande coisa a ganhar com um flat tax de 15% porque a sua taxa efetiva já é mais baixa do que a taxa marginal que é proposta.
Note-se que neste segundo escalão de 2017, com uma taxa média de 10,5%, a taxa marginal era 28,5%.(3) As pessoas por vezes cometem o erro de pensar que o IRS que estão a pagar corresponde à sua taxa marginal – e depois comparam 28,5% com 15% e acham que vão ficar a ganhar. Mas a taxa média efetiva do IRS é muito inferior à taxa marginal – porque as taxas são progressivas e por causa das importantes deduções a que a maioria das pessoas tem acesso.
Assim, quase 90% dos agregados pode ficar mais ou menos na mesma, ou ligeiramente melhor, com um flat tax de 15% – depende dos pormenores.(4) Mas só assim acontece com uma grande redução da receita fiscal, que se reflete essencialmente daí para cima e sobretudo nos 4% de famílias portuguesas titulares de maiores rendimentos. Isso já não depende dos pormenores.
Estes 4% de famílias ocupavam em 2017 o 4º e o 5º escalões (correspondendo atualmente a parte do 6º e ao 7º escalões). As suas taxas efetivas eram respetivamente de 31,2% e 43,5%. A proposta de flat tax reduz essa taxa efetiva para metade no 6º e para um terço no 7º. Fazendo a redução proporcional das coletas, verificamos que a redução de imposto cobrado a esses 4% de agregados é de 1750 milhões de euros. Se a proposta implica efetivamente uma redução de receita 2000 milhões, não sobra muito como redução de impostos para os outros 96% dos portugueses.
O impacto na receita
Alguns defensores das propostas mais radicais de redução da taxa marginal do imposto pessoal avançam uma justificação económica: a redução da taxa marginal teria efeitos benéficos nos incentivos ao trabalho de tal ordem que o crescimento económico dela resultante compensaria, ou quase, a perda direta de receita. Esta tese, que reclama a inspiração de romance de Ayn Rand, Atlas Shrugged, é bastante controversa na literatura económica.
Na verdade, os estudos sugerem que a elasticidade da oferta de trabalho é bastante baixa (Piketty, 2004:102ss) e que, portanto, esse poderoso efeito de incentivo não existe. Slemrod (1995) demonstrou que o efeito aparente de aumento do rendimento pessoal declarado nos EUA após a reforma fiscal de 1986 se deveu fundamentalmente à passagem de rendimento antes recebido na forma societária para rendimento pessoal – como aconteceria provavelmente em Portugal: haveria passagem de rendimento hoje tributado em IRC para IRS, o que não significa aumento do rendimento tributável total. Estudos como o de Diamond e Saez (2011) continuam a sustentar que taxas marginais elevadas de tributação dos rendimentos mais elevados são maximizadoras da utilidade social.
Conclusão
Algumas das promessas do flat tax, como a simplicidade ou a redução da carga fiscal, nada têm a ver com a questão do sistema – podem ser conseguidas no sistema atual, respetivamente com alteração das regras de apuramento do rendimento e deduções; ou com descida das taxas. O que caracteriza as propostas de flat tax é que, descendo os impostos, a descida beneficia desproporcionadamente os titulares de maiores rendimentos.
Todavia, e ainda que a perda de receita fosse de dois mil milhões, então a comparação séria a fazer – se pretendemos comparar sistemas – é entre esta proposta de flat tax e o nosso IRS progressivo com uma redução de taxas que baixasse a sua receita em dois mil milhões; ou uma redução de outros impostos ou contribuições que baixasse a receita em dois mil milhões.
Em síntese, se tiramos dois mil milhões à receita, a questão é se esta é a melhor forma e o fazer.
4. Flat tax e distribuição do encargo fiscal
Para determinar quem é que ganha com esta redução de imposto, podemos recorrer às estatísticas da receita fiscal, cujo último ano disponível é 2017. A comparação é dificultada porque o IRS desse ano tinha menos escalões e taxas em média mais altas, mas ainda assim podemos extrair conclusões interessantes.
Com um flat tax com deduções como as que são propostas, o imposto não mudaria muito para 90% dos agregados familiares. Cerca de metade (46%) não paga hoje qualquer IRS – ou porque não tem rendimentos que determinem o pagamento durante o ano ou porque, por efeito das deduções, tem um reembolso equivalente ao que pagou. Um flat tax com dedução fixa poderia manter este panorama.
Desde a taxa zero, que é então a taxa efetiva de 46% dos agregados, até ao topo do atual 3º escalão, a taxa efetiva vai subindo, como iria subindo com o flat tax. O ritmo dessa subida varia com as condições concretas do agregado familiar (depende do número de filhos e das deduções). Em 2017, nos dois primeiros escalões (correspondentes aos 3 primeiros escalões da tabela atual) a taxa efetiva do IRS foi em média de 1,9% no primeiro escalão e de 10,5% no segundo. Até este ponto (topo do antigo segundo escalão) temos 88,5% dos agregados familiares, que não têm grande coisa a ganhar com um flat tax de 15% porque a sua taxa efetiva já é mais baixa do que a taxa marginal que é proposta.
Note-se que neste segundo escalão de 2017, com uma taxa média de 10,5%, a taxa marginal era 28,5%.(3) As pessoas por vezes cometem o erro de pensar que o IRS que estão a pagar corresponde à sua taxa marginal – e depois comparam 28,5% com 15% e acham que vão ficar a ganhar. Mas a taxa média efetiva do IRS é muito inferior à taxa marginal – porque as taxas são progressivas e por causa das importantes deduções a que a maioria das pessoas tem acesso.
Assim, quase 90% dos agregados pode ficar mais ou menos na mesma, ou ligeiramente melhor, com um flat tax de 15% – depende dos pormenores.(4) Mas só assim acontece com uma grande redução da receita fiscal, que se reflete essencialmente daí para cima e sobretudo nos 4% de famílias portuguesas titulares de maiores rendimentos. Isso já não depende dos pormenores.
Estes 4% de famílias ocupavam em 2017 o 4º e o 5º escalões (correspondendo atualmente a parte do 6º e ao 7º escalões). As suas taxas efetivas eram respetivamente de 31,2% e 43,5%. A proposta de flat tax reduz essa taxa efetiva para metade no 6º e para um terço no 7º. Fazendo a redução proporcional das coletas, verificamos que a redução de imposto cobrado a esses 4% de agregados é de 1750 milhões de euros. Se a proposta implica efetivamente uma redução de receita 2000 milhões, não sobra muito como redução de impostos para os outros 96% dos portugueses.
O impacto na receita
Alguns defensores das propostas mais radicais de redução da taxa marginal do imposto pessoal avançam uma justificação económica: a redução da taxa marginal teria efeitos benéficos nos incentivos ao trabalho de tal ordem que o crescimento económico dela resultante compensaria, ou quase, a perda direta de receita. Esta tese, que reclama a inspiração de romance de Ayn Rand, Atlas Shrugged, é bastante controversa na literatura económica.
Na verdade, os estudos sugerem que a elasticidade da oferta de trabalho é bastante baixa (Piketty, 2004:102ss) e que, portanto, esse poderoso efeito de incentivo não existe. Slemrod (1995) demonstrou que o efeito aparente de aumento do rendimento pessoal declarado nos EUA após a reforma fiscal de 1986 se deveu fundamentalmente à passagem de rendimento antes recebido na forma societária para rendimento pessoal – como aconteceria provavelmente em Portugal: haveria passagem de rendimento hoje tributado em IRC para IRS, o que não significa aumento do rendimento tributável total. Estudos como o de Diamond e Saez (2011) continuam a sustentar que taxas marginais elevadas de tributação dos rendimentos mais elevados são maximizadoras da utilidade social.
Conclusão
Algumas das promessas do flat tax, como a simplicidade ou a redução da carga fiscal, nada têm a ver com a questão do sistema – podem ser conseguidas no sistema atual, respetivamente com alteração das regras de apuramento do rendimento e deduções; ou com descida das taxas. O que caracteriza as propostas de flat tax é que, descendo os impostos, a descida beneficia desproporcionadamente os titulares de maiores rendimentos.
Referências
Diamond, Peter e Emmanuel Saez, 2011, “The Case for a Progressive Tax: From Basic Research to Policy Recommendations”, Journal of Economic Perspectives 25-4, 165–190.
Hall, Robert E., e Alvin Rabushka, 1985, The Flat Tax (2ª ed., 1995) Stanford, Hoover Institution Press).
Piketty, Thomas, 2004, L’économie des inégalités, 5ª edição, Paris, Editions La Découverte.
Slemrod, Joel [1995], « Income Creation or Income Shifting? Behavioural Responses to the Tax Reform Act of 1986 », American Economic Review 85-2, 175-180.
Bartlett, Bruce 2012, The Benefit and The Burden: Tax Reform-Why We Need It and What It Will Take, Nova Iorque, Simon & Schuster.
Diamond, Peter e Emmanuel Saez, 2011, “The Case for a Progressive Tax: From Basic Research to Policy Recommendations”, Journal of Economic Perspectives 25-4, 165–190.
Hall, Robert E., e Alvin Rabushka, 1985, The Flat Tax (2ª ed., 1995) Stanford, Hoover Institution Press).
Piketty, Thomas, 2004, L’économie des inégalités, 5ª edição, Paris, Editions La Découverte.
Slemrod, Joel [1995], « Income Creation or Income Shifting? Behavioural Responses to the Tax Reform Act of 1986 », American Economic Review 85-2, 175-180.
Bartlett, Bruce 2012, The Benefit and The Burden: Tax Reform-Why We Need It and What It Will Take, Nova Iorque, Simon & Schuster.
no. 01 // fevereiro 2021
Artigo
FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
fundacaorespublica.pt
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1. O maior afastamento do nosso IRS a este modelo de “imposto dual” é o facto de os rendimentos da categoria B serem todos tratados como rendimento do trabalho e sujeitos a englobamento, não se fazendo nos rendimentos empresariais a necessária separação entre rendimentos que correspondem a capital e a trabalho.
2. O facto de a declaração de rendimentos caber num “cartão postal” era uma das reivindicações da proposta original de Hall e Rabushka – que para o conseguir propunha um conjunto de outras alterações ao imposto, designadamente eliminação de deduções. Bartlett (2012:110) refere que o breve movimento de apoio à Flat Tax nos anos 90 nos Estados Unidos se evaporou quando um estudo da iniciativa da Associação de Agentes Imobiliários estimou que o fim da dedução de juros de empréstimos hipotecários, contido naquela proposta de reforma fiscal, originaria uma queda de 15% no preço das habitações.
3. Esse segundo escalão foi dividido nos atuais 2º e 3º escalões em 2017, e a mesma taxa marginal é agora aplicada ao 3º escalão.
4. Esses pormenores, como já se referiu, são essencialmente a dedução específica aplicável ao rendimento de trabalho e pensões e as deduções à coleta. Com a taxa e a dedução fixa da proposta da IL, se esta não contiver quaisquer destas deduções, a taxa efetiva no topo do atual 3º escalão será de aproximadamente 9,5%.