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HENRIQUE BALTAZAR Assessor Político no Parlamento Europeu. Licenciado em Psicologia Social e das Organizações (ISPA), Mestre em Psicologia Clínica (ISPA), Pós-Graduado em Consultoria de Gestão (CEMAF/ISCTE) e MBA (Universidade Nova de Lisboa). ________________________________ |
DO FASCISMO AO POPULISMO |
RESUMO O crescimento do populismo ao longo das últimas décadas levou à intensificação do estudo do fenómeno, tanto do lado da oferta (supply side) – personalidade dos líderes, estratégias de comunicação, discursos ou estética – como do lado da procura (demand side). Focando nesta, analisam-se as condições que propiciam o crescimento dos populismos: crise económica, desigualdades, perceção de desigualdades, posicionamento dos partidos políticos e, em particular, os estados de funcionamento mental ativados pelos populistas. Argumenta-se que, tal como os fascismos, os populistas exacerbam os sentimentos de ameaça, medo e angústia que estimulam o recurso a mecanismos de defesa primitivos, unindo o grupo dos “puros” contra “os outros” (imigrantes, minorias, países estrangeiros), que identificam como ameaçadores e contra quem retaliam. Finalmente, apresentam-se sugestões a nível político para combater os populismos. ABSTRACT The growth of populism over the last few decades led to increasing studies of the phenomenon, both on the supply side – the personality of leaders, communication strategies, speeches, or aesthetics – and on the demand side. Focusing on the latest, the conditions that favour the growth of populism are analysed: economic crisis, inequalities, perception of inequalities, political parties’ positioning, and, particularly, the mental functioning activated by populists. It is argued that, like fascisms, populists intensify emotions of threat, fear and anguish that stimulate the use of primitive defence mechanisms, unifying the group of the “pure” against “the others” (immigrants, minorities, foreign countries), which they identify as threatening and against whom they retaliate. Finally, political suggestions to fight populism are presented. |
Introdução
Nos dias seguintes à eleição de Donald Trump, um pouco por todo o mundo pairava um sentimento de incredulidade e perguntava-se como tinha sido possível que os cidadãos dos EUA tivessem eleito um Presidente misógino, ignorante, agressivo e mal-educado.
Talvez por wishfull thinking, a esmagadora maioria dos jornalistas, comentadores e analistas políticos não acreditavam ser possível a eleição de um candidato que classificavam como populista e sem consistência, o que levou a que a sua candidatura tenha sido desvalorizada desde o início, chegando ao extremo de o Huffington Post, um dos mais influentes jornais digitais dos EUA, ter decidido colocar as notícias sobre a candidatura de Trump na secção de entretenimento, considerando que não era para ser levada a sério.
Como se veio a verificar, o caso era muito sério e Donald Trump, contra o stablishment do seu próprio partido, ganhou as eleições primárias aos candidatos republicanos mais prováveis e, de seguida, conquistou um apoio popular que era difícil de antever, tanto junto das faixas de eleitorado mais conservador, como de muitos eleitores habitualmente mais próximos do Partido Democrata.
Este homem bizarro, divisionista, agressivo, que não hesitava em dizer as maiores barbaridades, evidenciava estar pouco preparado e não tinha a postura adequada para o cargo mais poderoso do mundo acabaria por ser eleito Presidente dos EUA.
Pelos vistos, 2016 era o ano das surpresas políticas. Três meses antes a Europa tinha visto os cidadãos do Reino Unido escolherem, por referendo popular, a saída do seu país da União Europeia.
Também neste caso, uma campanha assente em propostas políticas inconsistentes, divisionistas, com uma visão binária da política e um antagonismo agressivo tinha conseguido vencer umas eleições com consequências políticas de enorme alcance.
Estaríamos, como diz Chantal Mouffe[1], a viver “um momento populista”?
O Crescimento do Populismo
Estas duas eleições vieram dar uma maior visibilidade ao fenómeno do populismo, mas a verdade é que este já vinha crescendo ao longo das últimas décadas.
A título de exemplo, vale a pena recordar que em 1986 o FPÖ, da Áustria, conseguiu 9,6% dos votos em eleições nacionais (e 22,5% em 1994); em França, Jean-Marie Le Pen obteve 14,4% nas eleições presidenciais de 1988, tendo a partir daí atingido sempre resultados de dois dígitos, até passar a liderança para a filha, que alcançou 34,1% em 2017; e, na Holanda, a Lista Pim Fortuyn ficou em segundo lugar nas eleições de 2002, com 16,9% dos votos.
Um pouco por todo o mundo, da Europa à América Latina, da Austrália aos EUA, o populismo tem vindo a crescer de forma assinalável e consistente nas últimas décadas, numa tendência que se pode considerar global.
Maniqueísmo e Polarização
Um aspeto comum nas várias conceções de populismo, de esquerda ou de direita, identificado pela generalidade dos estudos, é uma visão binária da sociedade e da política, motivo pelo qual o populismo pode ser considerado maniqueísta[2], tanto mais que os populistas partilham uma distinção moral e dicotómica entre “os puros” e “a elite corrupta”[3].
Onde o populismo de esquerda e direita se diferenciam é na identidade dos grupos sobre os quais se constrói a díade hostil que reforça a identidade do grupo de pertença: no caso dos populistas de direita, o grupo de referência é tendencialmente nativista, com o conceito de “pessoas comuns” a ter sobreposições com a ideia de nacionalidade, em oposição aos “outros” (os diferentes e as elites), que se aproveitam das “pessoas comuns”; para os populistas de esquerda, as “pessoas comuns” são sinónimo dos “de baixo”, que se opõem ao grupo dos ricos e dos poderosos.
Os populismos estruturam-se, assim, numa visão dicotómica da sociedade, sendo a polarização política, a crescente agressividade, incapacidade de diálogo e conciliação o resultado dessa conceção do mundo.
Causas da Emergência do Populismo
Até recentemente, o estudo do populismo esteve centrado sobretudo no lado da oferta (supply-side) do fenómeno, fosse na análise da personalidade dos líderes populistas, das suas estratégias de comunicação, discursos, estética ou outros aspetos. O estudo sistemático do lado da procura (demand-side) é relativamente recente, mas é essencial para se compreender como as mensagens populistas (oferta) – consideradas aqui no seu sentido mais amplo (ideias, linguagem, estética, etc.) – se relacionam e comunicam com o lado da procura. Ou seja, o como e o porquê de o populismo ser recebido pelas pessoas de determinada forma.
No âmbito da ciência política, tem sido crescente a produção de literatura sobre as condições socioestruturais que favorecem o crescimento do populismo (sobretudo de extrema-direita) existindo consideráveis evidências de que as crises económicas são “solo fértil” para o seu crescimento.
Não obstante, constata-se que também em momentos de crescimento económico e desemprego baixo houve um número significativo de partidos populistas em diferentes países que cresceram de forma acentuada[4]. Assim, apesar de a situação económica negativa poder ser propícia ao crescimento do populismo, ela não será a sua única causa.
A principal explicação que tem sido avançada é que o crescimento económico não se traduz necessariamente na redução das desigualdades sociais. De acordo com Piketty[5], o que se verifica é que o crescimento económico – ao contrário do que é prescrito pela doutrina económica liberal – não resulta em prosperidade para a globalidade dos cidadãos. Pelo contrário, existem causas estruturais no capitalismo (o património herdado e as taxas de rendibilidade dos capitais superiores à taxa de crescimento da economia) que levam ao crescimento das desigualdades mesmo em tempos de prosperidade económica.
Estas conclusões vão ao encontro da perspetiva de Reich[6], que defende que são as desigualdades crescentes, mais do que a situação da economia, a causa do crescimento do populismo.
Em contraponto com as explicações de cariz socioeconómico, alguns autores têm assinalado que o que está em causa não são as condições materiais per si (que, apesar de poderem existir e exercer o seu contributo não terão o papel determinante ou, pelo menos, não serão suficientes), mas a existência de determinado tipo de sentimentos partilhados no seio de grupos.
Neste sentido, devemos distinguir a privação material efetiva da perceção de privação material relativa (ou seja, o resultado da comparação com outros) podendo concluir-se que é sobretudo esta que está associada ao populismo[7]. Isto ocorrerá porque a perceção de privação relativa está relacionada com o sentimento de que o grupo de pertença sofre de injustiça (ou se encontra sob ameaça dela) comparativamente a grupos externos (vistos como adversários), desenvolvendo-se uma culpabilização desses adversários pela injustiça sofrida, num funcionamento maniqueísta que é característico dos populismos.
Uma outra linha de estudo tem-se debruçado sobre o posicionamento dos partidos políticos e o seu efeito nas pessoas. A ideia subjacente a esta abordagem é que os partidos e atores políticos criam um espaço de identificação para os cidadãos, o que leva a que o posicionamento que os primeiros assumem tenha consequências na forma como os cidadãos se relacionam com eles e com as ideias que representam.
Consequentemente, as mudanças operadas nos partidos políticos – como a “Terceira Via” inaugurada pelo Labour, no Reino Unido, e seguida depois por muitos partidos sociais-democratas da Europa – levam a mudanças nas possibilidades de identificação por parte dos cidadãos, não apenas relativamente aos partidos em si, mas ao núcleo das ideias que representam. Assim, algumas pessoas terão passado a identificar-se com o New Labour, enquanto outras com outros partidos ou movimentos e, outras ainda, terão ficado sem uma verdadeira possibilidade de identificação política. Estas últimas, encontrando-se sem um campo político a que se pudessem referenciar, terão ficado disponíveis para novas identificações, nomeadamente com os movimentos e partidos populistas, que oferecem as soluções salvíficas para todos os problemas.
O facto de muitos partidos sociais-democratas europeus terem deixado de se apresentar como críticos do capitalismo e defensores dos direitos sociais, passando a apresentar a sua missão de forma muito semelhante ao discurso da direita[8], implicitamente aceitando os pressupostos políticos e económicos ditados pela direita (rigor orçamental, promoção da concorrência, desenvolvimento dos mercados, competitividade da economia, etc.) e colocando o foco na competência dos atores políticos e não nas diferenças políticas essenciais entre os partidos (as diferenças ideológicas), terá conduzido a uma incapacidade de representar e capturar eleitoralmente a crescente insatisfação social, apresentando-se, assim, uma oportunidade de ouro para a emergência do populismo.
A este respeito, um estudo exaustivo de 300 eleições entre 1948 e 2020[9] conclui que existe uma ligação efetiva entre as desigualdades e o populismo, mas que ambos os fenómenos encontram explicação numa profunda transformação dos partidos tradicionais a favor das elites. Se no passado os principais partidos tinham uma identidade de classe, com os partidos sociais-democratas a representarem as classes com rendimentos mais baixos e os partidos de direita as classes mais ricas, agora os sociais-democratas representam a população mais instruída, enquanto a direita continua a representar as classes mais ricas.
Aí residirá, portanto, uma das causas para o crescimento das desigualdades, pois terá deixado de haver entre os principais partidos quem represente e defenda as classes de menores rendimentos; mas tal será, também, a causa para que essas classes não se identifiquem com a social-democracia (que já não os representa), deixando o campo aberto para a sua identificação com os políticos populistas (que alegam representar o povo).
Do Fascismo ao Populismo, a mesma Base Psicológica
A análise do lado da procura (demand-side) não estaria completa sem a análise daquilo que se passa no domínio intrapsíquico, ou seja, no domínio da psicologia e, particularmente, da psicanálise.
Para abordar estes domínios vale a pena revisitar Freud[10], que considerava que o funcionamento dos indivíduos quando inseridos num grupo teria características particulares, marcadas por um “quadro inequívoco de regressão da atividade mental a um estágio anterior”.
Construindo sobre esta teorização, Adorno[11] defende que o que o demagogo faz é incitar regressões arcaicas que reduzem o indivíduo a membro de uma multidão, considerando que as ideologias fascistas mobilizam processos regressivos inconscientes que existem em todos nós.
Há poucos anos diríamos que esta análise seria historicamente datada, descrevendo uma realidade que tinha ficado para trás na História, pois as condições eram muito distantes das que atualmente existem e que tanto a sociedade como a consciência individual tinham evoluído de tal forma que a análise de Adorno não se aplicaria aos dias de hoje. Porém, o recente crescimento dos populismos obriga-nos a repensar essa perspetiva.
Apesar das condições sociais e históricas terem mudado, as características nucleares do funcionamento humano são essencialmente as mesmas desde, pelo menos, a antiguidade clássica, época que fixou na literatura os dilemas, conflitos e angústias da humanidade – que ainda hoje, não por acaso, mantêm a sua atualidade.
Existindo, obviamente, uma grande diferença entre os fascismos de outrora e os populismos de hoje, devemos ter presente que os mecanismos psicológicos subjacentes à adesão a uns e a outros não diferem muito, existindo sintomas que sugerem que o mesmo tipo de funcionamento psico-político está a emergir em muitos lugares do mundo[12].
Trata-se de um estado mental que, para defender o ego contra o sentimento de ameaça externa, recorre à utilização de mecanismos de defesa primitivos (negação, clivagem, projeção), característicos das fases iniciais do desenvolvimento infantil. Na vida adulta esses mecanismos não costumam ser dominantes (exceto em casos de patologia, como a psicose), mas são por vezes ativados, particularmente sob situações de maior angústia ou stress.
O que sucede com a ação dos líderes populistas é que esta exacerba sentimentos de angústia, ameaça e medo dirigidos ao grupo de pertença, potenciando o recurso a esses mecanismos de defesa primitivos.
Este efeito torna-se mais agudo em grupos vulneráveis, que vivenciam emoções negativas muito fortes, que podem até ser insuportáveis. Estas emoções podem derivar da perceção (ou da ameaça) de perda material, de importância social, de identidade de grupo, ou mesmo do sentimento de humilhação. É esse sentimento de perda ou ameaça que os populistas alimentam, culpando “os outros” (os extra-grupo) e rejeitando as explicações complexas e as dificuldades que podem estar envolvidas na resposta aos problemas[13].
Um outro aspeto importante para fomentar a adesão e a união grupal é a gratificação narcísica trazida pela pertença a um grupo, particularmente para quem se sente ferido pela humilhação, a ameaça de perda material ou de estatuto social.
O sentimento de que já não têm a possibilidade de aspirar à realização dos ideais do seu grupo social e os sentimentos de fracasso associados geram uma pressão para curar as feridas narcísicas através do reviver de um passado glorioso. Desse modo, usam a nostalgia política (de um tempo de glória que pode ou não ter ocorrido) como forma de mitigar a angústia de grupo, como uma defesa contra a perda, com a promessa de que tudo poderá voltar a ser grandioso[14].
A ressonância disto com o Make America Great Again, de Donald Trump, não poderia ser maior. O sentimento de parte da população de que tinha ficado para trás no processo de modernização (nas regiões industriais da Rusty Belt que sofreram com a deslocalização das fábricas), daqueles que sentiram a sua identidade grupal ameaçada (pelo número de imigrantes, sobretudo no Sul dos EUA) e daqueles que viram os seus valores ameaçados por uma sociedade crescentemente progressista (direitos das mulheres, LGBT+, etc.) foi muito importante para a eleição de Donald Trump. Mas exemplos semelhantes podem ser encontrados na Europa, com a nostalgia de tempos gloriosos de outrora, mesmo que para isso seja necessário branquear os fascismos.
O processo de afirmação dos populistas requer, portanto, a consolidação da identidade de grupo, “os puros”, que beneficiam da gratificação inerente à pertença a um grupo que é narcisado por um líder forte, e que se consideram injustiçados relativamente à “elite corrupta” e aos extra-grupo.
Os líderes populistas procuram unir o grupo, ao mesmo tempo que excluem os que não os apoiam. É assim que, por paradoxal que possa parecer, quando um populista fala do povo, ele não se refere a todo o povo, mas apenas a uma parte dele. Ou seja, a identidade deste povo que o populista diz representar é feita por contraste e exclusão dos “outros”, os extra-grupo, o que tem contornos variáveis e pode excluir partes significativas da população (o “povo” de Bolsonaro não inclui homossexuais, comunistas, intelectuais, jornalistas, “petistas”, etc.).
Relativamente a esses “outros” desenvolve-se um forte ressentimento, envolvendo emoções como a frustração, a inveja e a angústia, que é largamente considerado como a base afetiva das formas de populismo reacionário[15].
Ao acarinhar a queixa, sentem-se no direito de estar numa posição na qual “os outros” merecem a sua ação retaliatória porque, paradoxalmente, eles estão sempre a agir (acting out) a partir de uma posição de suposta vitimização, o que transformam numa posição sádica[16].
Este binómio vitimização-agressão, que ocorre a nível intrapsíquico, é ilustrativo do funcionamento geral do populismo e de como a exacerbação das queixas pelo populista (a vitimização do grupo) se torna, afinal, numa posição agressiva (sádica) contra “os outros”, os extra-grupo, sejam “elites”, países estrangeiros, imigrantes ou minorias.
É importante notar que a perceção de que o grupo de pertença é alvo de injustiça ou de que se é vítima de um trauma nacional pode ser a consequência de se aderir a uma narrativa populista e não necessariamente a causa da adesão[17]. Por vezes, as queixas até têm muito pouca razão de ser, mas a ideia de que o grupo é vítima de uma injustiça vai-se consolidando no grupo e vai-se tornando uma realidade – uma realidade criada discursivamente.
A grande capacidade do discurso populista para atrair as pessoas residirá, assim, no apelo que faz aos processos inconscientes, influenciando por essa via as atitudes políticas. Num estudo recente[18], apurou-se que a simples leitura de um discurso populista de direita leva a que, no momento seguinte, algumas pessoas recorram mais à clivagem como mecanismo de defesa do que se lerem um discurso não populista. Se atendermos a que o estudo foi realizado com uma exposição pontual e limitado à forma escrita, podemos então imaginar as consequências da exposição sucessiva a esse tipo de conteúdos.
Ter uma Agenda Própria
A partir daqui, como diria Lenine, “que fazer”?
A primeira coisa, por muito tentadora que possa parecer, é não ceder à agenda populista.
A forma simplista e tantas vezes distorcida como os populistas comunicam incita a responder-lhes diretamente: desmentir, contraditar, argumentar. Contudo, ao fazê-lo, aceita-se implicitamente a sua agenda[19].
É o que acontece quando os populistas transmitem a mensagem de que os imigrantes são tendencialmente criminosos, o país é inseguro e os polícias são heróis a quem não são dados os meios para combater a “bandidagem”. A resposta habitual é demonstrar que a polícia atua, realizar ações de grande visibilidade para prender criminosos e exibir polícias fortemente equipados. Ou seja, perante a acusação de fragilidade, mostrar força, afirmar a autoridade do Estado.
Esta resposta, porém, confirma a narrativa. Serve para sacudir a pressão momentânea, mas, ao conformar-se à agenda populista, legitima-a e alimenta-a. Desse modo, não são apenas os populistas que trazem a insegurança para o debate, mas também o poder político, pois tanto uma narrativa como a outra exercitam o medo de insegurança. É por isso que imagens de criminosos a serem presos, como nos programas de televisão em que as câmaras acompanham os polícias, não transmitem a ideia de segurança pela eficácia policial; pelo contrário, fazem com que as pessoas sintam que o crime é omnipresente.
É através da apresentação de narrativas positivas, mostrando bons exemplos de integração, que se pode contrariar a associação da insegurança aos imigrantes. Ou seja, estimulando associações mentais positivas, em vez das negativas que os populistas sublinham.
Isto implica resistir à pressão para debater nos termos que os populistas trazem para a agenda mediática, pois só o facto de lhes responder diretamente já é para eles meia vitória.
Se não ceder à agenda populista é o primeiro passo, o segundo é ser capaz de apresentar uma agenda própria. O espaço mediático, tal como a política, tem horror ao vazio; se não conseguirmos definir a agenda, alguém o fará por nós e de acordo com os seus interesses. É necessário, portanto, ter iniciativa política para influenciar os temas em discussão pública.
O aumento dos salários pode ser um bom exemplo. Tratando-se de um tema difícil para toda a direita, tanto por motivos ideológicos como por parte importante da sua base eleitoral ser composta por pequenos empresários, é particularmente mais incómodo para os populistas de direita. Desde logo porque a atitude extremada que costumam apresentar não resulta relativamente aos aumentos salariais, pois é um assunto em que (quase) todos compreendem as implicações e a necessidade de evoluções progressivas. Mas também porque o tema atravessa diferentes classes com interesses distintos, baralhando as posições identitárias em que os populismos medram.
É por esse motivo que, por vezes, questões que são essencialmente remuneratórias são apresentadas como tratando-se da defesa da dignidade da classe - veja-se o caso dos enfermeiros -, que é uma forma de afastar a discussão pública dos temas salariais e centrá-la nas dimensões afetivas ligadas ao ressentimento e à humilhação, mais suscetíveis de gerar clivagem e radicalização. Enquadrando o debate deste modo, os populistas conseguem navegar no caldo afetivo que lhes convém; focar nas remunerações obriga-os a posicionarem-se num quadro ideológico em que parte importante do seu mercado eleitoral não concorda com as suas posições.
Objetivos Inspiradores
Durante o Século XX, a social-democracia europeia apresentava propostas de uma vida melhor, um mundo mais justo e igualitário. Ainda que de modo imperfeito e incompleto, parte importante dessas propostas foram sendo concretizadas alcançando-se importantes conquistas sociais: escola pública, saúde pública universal, proteção na doença e na velhice, prestações sociais para os mais desfavorecidos. A função redistributiva do Estado, prescrita pelos sociais-democratas, foi assim progressivamente concretizada.
Porém, a partir de determinada altura, a ameaça de retrocesso nessas políticas levou a que se passasse de um discurso aspiracional, de conquistas a obter (construir o Estado social), para um discurso defensivo (proteção do Estado social), de resistência para preservar o que se havia conseguido.
O problema é que neste discurso não há ambição, não há promessa de uma vida melhor. O melhor que a social-democracia tem para oferecer parece ser, afinal, manter as coisas essencialmente como estão.
Ora, a maioria das pessoas ambiciona uma vida melhor. Se os sociais-democratas não têm uma proposta significativa para concretizar essas aspirações, as pessoas voltam-se para quem lhes prometa isso. Particularmente se experimentarem sentimentos de frustração e humilhação, que agudizam a sua necessidade de uma resposta radical. Mesmo que a proposta seja inconsistente, podem, pelo menos, acarinhar essa aspiração. Naturalmente, preferem viver com esperança (mesmo que ilusória) do que sem esperança.
A utilização de discursos aspiracionais, inspirados na confiança e na proposta de uma vida melhor é, por isso, essencial para combater os populismos[20]. É também importante para a social-democracia retomar a sua capacidade de atração eleitoral.
Em Portugal, o acordo de médio-prazo para aumentos ambiciosos mas realistas do salário mínimo, como conseguido na anterior legislatura, é dos melhores exemplos que podem ser dados. Largas faixas da população a auferirem apenas esse rendimento puderam ter um razoável otimismo de melhoria das suas condições de vida: quase 20 por cento de aumento salarial, muito mais do que isso no rendimento disponível.
Acresce que, de forma virtuosa, essa expectativa positiva estendeu-se também a outras faixas da população, que não estavam abrangidas por esses aumentos, mas que incorporaram a ideia de que existia um rumo global de melhoria dos rendimentos e da equidade social. Ou seja, o objetivo concreto que apenas abrangia alguns tornou-se representativo de um rumo para todos, um caminho que o país tomava, um desígnio comum.
Objetivos concretos definidos para o médio-prazo são muito importantes, particularmente se integrados numa visão da sociedade e do mundo que seja inspiradora. A olhar para o futuro com esperança. Com a confiança de quem quer construir um mundo (e uma vida) melhor.
Nos dias seguintes à eleição de Donald Trump, um pouco por todo o mundo pairava um sentimento de incredulidade e perguntava-se como tinha sido possível que os cidadãos dos EUA tivessem eleito um Presidente misógino, ignorante, agressivo e mal-educado.
Talvez por wishfull thinking, a esmagadora maioria dos jornalistas, comentadores e analistas políticos não acreditavam ser possível a eleição de um candidato que classificavam como populista e sem consistência, o que levou a que a sua candidatura tenha sido desvalorizada desde o início, chegando ao extremo de o Huffington Post, um dos mais influentes jornais digitais dos EUA, ter decidido colocar as notícias sobre a candidatura de Trump na secção de entretenimento, considerando que não era para ser levada a sério.
Como se veio a verificar, o caso era muito sério e Donald Trump, contra o stablishment do seu próprio partido, ganhou as eleições primárias aos candidatos republicanos mais prováveis e, de seguida, conquistou um apoio popular que era difícil de antever, tanto junto das faixas de eleitorado mais conservador, como de muitos eleitores habitualmente mais próximos do Partido Democrata.
Este homem bizarro, divisionista, agressivo, que não hesitava em dizer as maiores barbaridades, evidenciava estar pouco preparado e não tinha a postura adequada para o cargo mais poderoso do mundo acabaria por ser eleito Presidente dos EUA.
Pelos vistos, 2016 era o ano das surpresas políticas. Três meses antes a Europa tinha visto os cidadãos do Reino Unido escolherem, por referendo popular, a saída do seu país da União Europeia.
Também neste caso, uma campanha assente em propostas políticas inconsistentes, divisionistas, com uma visão binária da política e um antagonismo agressivo tinha conseguido vencer umas eleições com consequências políticas de enorme alcance.
Estaríamos, como diz Chantal Mouffe[1], a viver “um momento populista”?
O Crescimento do Populismo
Estas duas eleições vieram dar uma maior visibilidade ao fenómeno do populismo, mas a verdade é que este já vinha crescendo ao longo das últimas décadas.
A título de exemplo, vale a pena recordar que em 1986 o FPÖ, da Áustria, conseguiu 9,6% dos votos em eleições nacionais (e 22,5% em 1994); em França, Jean-Marie Le Pen obteve 14,4% nas eleições presidenciais de 1988, tendo a partir daí atingido sempre resultados de dois dígitos, até passar a liderança para a filha, que alcançou 34,1% em 2017; e, na Holanda, a Lista Pim Fortuyn ficou em segundo lugar nas eleições de 2002, com 16,9% dos votos.
Um pouco por todo o mundo, da Europa à América Latina, da Austrália aos EUA, o populismo tem vindo a crescer de forma assinalável e consistente nas últimas décadas, numa tendência que se pode considerar global.
Maniqueísmo e Polarização
Um aspeto comum nas várias conceções de populismo, de esquerda ou de direita, identificado pela generalidade dos estudos, é uma visão binária da sociedade e da política, motivo pelo qual o populismo pode ser considerado maniqueísta[2], tanto mais que os populistas partilham uma distinção moral e dicotómica entre “os puros” e “a elite corrupta”[3].
Onde o populismo de esquerda e direita se diferenciam é na identidade dos grupos sobre os quais se constrói a díade hostil que reforça a identidade do grupo de pertença: no caso dos populistas de direita, o grupo de referência é tendencialmente nativista, com o conceito de “pessoas comuns” a ter sobreposições com a ideia de nacionalidade, em oposição aos “outros” (os diferentes e as elites), que se aproveitam das “pessoas comuns”; para os populistas de esquerda, as “pessoas comuns” são sinónimo dos “de baixo”, que se opõem ao grupo dos ricos e dos poderosos.
Os populismos estruturam-se, assim, numa visão dicotómica da sociedade, sendo a polarização política, a crescente agressividade, incapacidade de diálogo e conciliação o resultado dessa conceção do mundo.
Causas da Emergência do Populismo
Até recentemente, o estudo do populismo esteve centrado sobretudo no lado da oferta (supply-side) do fenómeno, fosse na análise da personalidade dos líderes populistas, das suas estratégias de comunicação, discursos, estética ou outros aspetos. O estudo sistemático do lado da procura (demand-side) é relativamente recente, mas é essencial para se compreender como as mensagens populistas (oferta) – consideradas aqui no seu sentido mais amplo (ideias, linguagem, estética, etc.) – se relacionam e comunicam com o lado da procura. Ou seja, o como e o porquê de o populismo ser recebido pelas pessoas de determinada forma.
No âmbito da ciência política, tem sido crescente a produção de literatura sobre as condições socioestruturais que favorecem o crescimento do populismo (sobretudo de extrema-direita) existindo consideráveis evidências de que as crises económicas são “solo fértil” para o seu crescimento.
Não obstante, constata-se que também em momentos de crescimento económico e desemprego baixo houve um número significativo de partidos populistas em diferentes países que cresceram de forma acentuada[4]. Assim, apesar de a situação económica negativa poder ser propícia ao crescimento do populismo, ela não será a sua única causa.
A principal explicação que tem sido avançada é que o crescimento económico não se traduz necessariamente na redução das desigualdades sociais. De acordo com Piketty[5], o que se verifica é que o crescimento económico – ao contrário do que é prescrito pela doutrina económica liberal – não resulta em prosperidade para a globalidade dos cidadãos. Pelo contrário, existem causas estruturais no capitalismo (o património herdado e as taxas de rendibilidade dos capitais superiores à taxa de crescimento da economia) que levam ao crescimento das desigualdades mesmo em tempos de prosperidade económica.
Estas conclusões vão ao encontro da perspetiva de Reich[6], que defende que são as desigualdades crescentes, mais do que a situação da economia, a causa do crescimento do populismo.
Em contraponto com as explicações de cariz socioeconómico, alguns autores têm assinalado que o que está em causa não são as condições materiais per si (que, apesar de poderem existir e exercer o seu contributo não terão o papel determinante ou, pelo menos, não serão suficientes), mas a existência de determinado tipo de sentimentos partilhados no seio de grupos.
Neste sentido, devemos distinguir a privação material efetiva da perceção de privação material relativa (ou seja, o resultado da comparação com outros) podendo concluir-se que é sobretudo esta que está associada ao populismo[7]. Isto ocorrerá porque a perceção de privação relativa está relacionada com o sentimento de que o grupo de pertença sofre de injustiça (ou se encontra sob ameaça dela) comparativamente a grupos externos (vistos como adversários), desenvolvendo-se uma culpabilização desses adversários pela injustiça sofrida, num funcionamento maniqueísta que é característico dos populismos.
Uma outra linha de estudo tem-se debruçado sobre o posicionamento dos partidos políticos e o seu efeito nas pessoas. A ideia subjacente a esta abordagem é que os partidos e atores políticos criam um espaço de identificação para os cidadãos, o que leva a que o posicionamento que os primeiros assumem tenha consequências na forma como os cidadãos se relacionam com eles e com as ideias que representam.
Consequentemente, as mudanças operadas nos partidos políticos – como a “Terceira Via” inaugurada pelo Labour, no Reino Unido, e seguida depois por muitos partidos sociais-democratas da Europa – levam a mudanças nas possibilidades de identificação por parte dos cidadãos, não apenas relativamente aos partidos em si, mas ao núcleo das ideias que representam. Assim, algumas pessoas terão passado a identificar-se com o New Labour, enquanto outras com outros partidos ou movimentos e, outras ainda, terão ficado sem uma verdadeira possibilidade de identificação política. Estas últimas, encontrando-se sem um campo político a que se pudessem referenciar, terão ficado disponíveis para novas identificações, nomeadamente com os movimentos e partidos populistas, que oferecem as soluções salvíficas para todos os problemas.
O facto de muitos partidos sociais-democratas europeus terem deixado de se apresentar como críticos do capitalismo e defensores dos direitos sociais, passando a apresentar a sua missão de forma muito semelhante ao discurso da direita[8], implicitamente aceitando os pressupostos políticos e económicos ditados pela direita (rigor orçamental, promoção da concorrência, desenvolvimento dos mercados, competitividade da economia, etc.) e colocando o foco na competência dos atores políticos e não nas diferenças políticas essenciais entre os partidos (as diferenças ideológicas), terá conduzido a uma incapacidade de representar e capturar eleitoralmente a crescente insatisfação social, apresentando-se, assim, uma oportunidade de ouro para a emergência do populismo.
A este respeito, um estudo exaustivo de 300 eleições entre 1948 e 2020[9] conclui que existe uma ligação efetiva entre as desigualdades e o populismo, mas que ambos os fenómenos encontram explicação numa profunda transformação dos partidos tradicionais a favor das elites. Se no passado os principais partidos tinham uma identidade de classe, com os partidos sociais-democratas a representarem as classes com rendimentos mais baixos e os partidos de direita as classes mais ricas, agora os sociais-democratas representam a população mais instruída, enquanto a direita continua a representar as classes mais ricas.
Aí residirá, portanto, uma das causas para o crescimento das desigualdades, pois terá deixado de haver entre os principais partidos quem represente e defenda as classes de menores rendimentos; mas tal será, também, a causa para que essas classes não se identifiquem com a social-democracia (que já não os representa), deixando o campo aberto para a sua identificação com os políticos populistas (que alegam representar o povo).
Do Fascismo ao Populismo, a mesma Base Psicológica
A análise do lado da procura (demand-side) não estaria completa sem a análise daquilo que se passa no domínio intrapsíquico, ou seja, no domínio da psicologia e, particularmente, da psicanálise.
Para abordar estes domínios vale a pena revisitar Freud[10], que considerava que o funcionamento dos indivíduos quando inseridos num grupo teria características particulares, marcadas por um “quadro inequívoco de regressão da atividade mental a um estágio anterior”.
Construindo sobre esta teorização, Adorno[11] defende que o que o demagogo faz é incitar regressões arcaicas que reduzem o indivíduo a membro de uma multidão, considerando que as ideologias fascistas mobilizam processos regressivos inconscientes que existem em todos nós.
Há poucos anos diríamos que esta análise seria historicamente datada, descrevendo uma realidade que tinha ficado para trás na História, pois as condições eram muito distantes das que atualmente existem e que tanto a sociedade como a consciência individual tinham evoluído de tal forma que a análise de Adorno não se aplicaria aos dias de hoje. Porém, o recente crescimento dos populismos obriga-nos a repensar essa perspetiva.
Apesar das condições sociais e históricas terem mudado, as características nucleares do funcionamento humano são essencialmente as mesmas desde, pelo menos, a antiguidade clássica, época que fixou na literatura os dilemas, conflitos e angústias da humanidade – que ainda hoje, não por acaso, mantêm a sua atualidade.
Existindo, obviamente, uma grande diferença entre os fascismos de outrora e os populismos de hoje, devemos ter presente que os mecanismos psicológicos subjacentes à adesão a uns e a outros não diferem muito, existindo sintomas que sugerem que o mesmo tipo de funcionamento psico-político está a emergir em muitos lugares do mundo[12].
Trata-se de um estado mental que, para defender o ego contra o sentimento de ameaça externa, recorre à utilização de mecanismos de defesa primitivos (negação, clivagem, projeção), característicos das fases iniciais do desenvolvimento infantil. Na vida adulta esses mecanismos não costumam ser dominantes (exceto em casos de patologia, como a psicose), mas são por vezes ativados, particularmente sob situações de maior angústia ou stress.
O que sucede com a ação dos líderes populistas é que esta exacerba sentimentos de angústia, ameaça e medo dirigidos ao grupo de pertença, potenciando o recurso a esses mecanismos de defesa primitivos.
Este efeito torna-se mais agudo em grupos vulneráveis, que vivenciam emoções negativas muito fortes, que podem até ser insuportáveis. Estas emoções podem derivar da perceção (ou da ameaça) de perda material, de importância social, de identidade de grupo, ou mesmo do sentimento de humilhação. É esse sentimento de perda ou ameaça que os populistas alimentam, culpando “os outros” (os extra-grupo) e rejeitando as explicações complexas e as dificuldades que podem estar envolvidas na resposta aos problemas[13].
Um outro aspeto importante para fomentar a adesão e a união grupal é a gratificação narcísica trazida pela pertença a um grupo, particularmente para quem se sente ferido pela humilhação, a ameaça de perda material ou de estatuto social.
O sentimento de que já não têm a possibilidade de aspirar à realização dos ideais do seu grupo social e os sentimentos de fracasso associados geram uma pressão para curar as feridas narcísicas através do reviver de um passado glorioso. Desse modo, usam a nostalgia política (de um tempo de glória que pode ou não ter ocorrido) como forma de mitigar a angústia de grupo, como uma defesa contra a perda, com a promessa de que tudo poderá voltar a ser grandioso[14].
A ressonância disto com o Make America Great Again, de Donald Trump, não poderia ser maior. O sentimento de parte da população de que tinha ficado para trás no processo de modernização (nas regiões industriais da Rusty Belt que sofreram com a deslocalização das fábricas), daqueles que sentiram a sua identidade grupal ameaçada (pelo número de imigrantes, sobretudo no Sul dos EUA) e daqueles que viram os seus valores ameaçados por uma sociedade crescentemente progressista (direitos das mulheres, LGBT+, etc.) foi muito importante para a eleição de Donald Trump. Mas exemplos semelhantes podem ser encontrados na Europa, com a nostalgia de tempos gloriosos de outrora, mesmo que para isso seja necessário branquear os fascismos.
O processo de afirmação dos populistas requer, portanto, a consolidação da identidade de grupo, “os puros”, que beneficiam da gratificação inerente à pertença a um grupo que é narcisado por um líder forte, e que se consideram injustiçados relativamente à “elite corrupta” e aos extra-grupo.
Os líderes populistas procuram unir o grupo, ao mesmo tempo que excluem os que não os apoiam. É assim que, por paradoxal que possa parecer, quando um populista fala do povo, ele não se refere a todo o povo, mas apenas a uma parte dele. Ou seja, a identidade deste povo que o populista diz representar é feita por contraste e exclusão dos “outros”, os extra-grupo, o que tem contornos variáveis e pode excluir partes significativas da população (o “povo” de Bolsonaro não inclui homossexuais, comunistas, intelectuais, jornalistas, “petistas”, etc.).
Relativamente a esses “outros” desenvolve-se um forte ressentimento, envolvendo emoções como a frustração, a inveja e a angústia, que é largamente considerado como a base afetiva das formas de populismo reacionário[15].
Ao acarinhar a queixa, sentem-se no direito de estar numa posição na qual “os outros” merecem a sua ação retaliatória porque, paradoxalmente, eles estão sempre a agir (acting out) a partir de uma posição de suposta vitimização, o que transformam numa posição sádica[16].
Este binómio vitimização-agressão, que ocorre a nível intrapsíquico, é ilustrativo do funcionamento geral do populismo e de como a exacerbação das queixas pelo populista (a vitimização do grupo) se torna, afinal, numa posição agressiva (sádica) contra “os outros”, os extra-grupo, sejam “elites”, países estrangeiros, imigrantes ou minorias.
É importante notar que a perceção de que o grupo de pertença é alvo de injustiça ou de que se é vítima de um trauma nacional pode ser a consequência de se aderir a uma narrativa populista e não necessariamente a causa da adesão[17]. Por vezes, as queixas até têm muito pouca razão de ser, mas a ideia de que o grupo é vítima de uma injustiça vai-se consolidando no grupo e vai-se tornando uma realidade – uma realidade criada discursivamente.
A grande capacidade do discurso populista para atrair as pessoas residirá, assim, no apelo que faz aos processos inconscientes, influenciando por essa via as atitudes políticas. Num estudo recente[18], apurou-se que a simples leitura de um discurso populista de direita leva a que, no momento seguinte, algumas pessoas recorram mais à clivagem como mecanismo de defesa do que se lerem um discurso não populista. Se atendermos a que o estudo foi realizado com uma exposição pontual e limitado à forma escrita, podemos então imaginar as consequências da exposição sucessiva a esse tipo de conteúdos.
Ter uma Agenda Própria
A partir daqui, como diria Lenine, “que fazer”?
A primeira coisa, por muito tentadora que possa parecer, é não ceder à agenda populista.
A forma simplista e tantas vezes distorcida como os populistas comunicam incita a responder-lhes diretamente: desmentir, contraditar, argumentar. Contudo, ao fazê-lo, aceita-se implicitamente a sua agenda[19].
É o que acontece quando os populistas transmitem a mensagem de que os imigrantes são tendencialmente criminosos, o país é inseguro e os polícias são heróis a quem não são dados os meios para combater a “bandidagem”. A resposta habitual é demonstrar que a polícia atua, realizar ações de grande visibilidade para prender criminosos e exibir polícias fortemente equipados. Ou seja, perante a acusação de fragilidade, mostrar força, afirmar a autoridade do Estado.
Esta resposta, porém, confirma a narrativa. Serve para sacudir a pressão momentânea, mas, ao conformar-se à agenda populista, legitima-a e alimenta-a. Desse modo, não são apenas os populistas que trazem a insegurança para o debate, mas também o poder político, pois tanto uma narrativa como a outra exercitam o medo de insegurança. É por isso que imagens de criminosos a serem presos, como nos programas de televisão em que as câmaras acompanham os polícias, não transmitem a ideia de segurança pela eficácia policial; pelo contrário, fazem com que as pessoas sintam que o crime é omnipresente.
É através da apresentação de narrativas positivas, mostrando bons exemplos de integração, que se pode contrariar a associação da insegurança aos imigrantes. Ou seja, estimulando associações mentais positivas, em vez das negativas que os populistas sublinham.
Isto implica resistir à pressão para debater nos termos que os populistas trazem para a agenda mediática, pois só o facto de lhes responder diretamente já é para eles meia vitória.
Se não ceder à agenda populista é o primeiro passo, o segundo é ser capaz de apresentar uma agenda própria. O espaço mediático, tal como a política, tem horror ao vazio; se não conseguirmos definir a agenda, alguém o fará por nós e de acordo com os seus interesses. É necessário, portanto, ter iniciativa política para influenciar os temas em discussão pública.
O aumento dos salários pode ser um bom exemplo. Tratando-se de um tema difícil para toda a direita, tanto por motivos ideológicos como por parte importante da sua base eleitoral ser composta por pequenos empresários, é particularmente mais incómodo para os populistas de direita. Desde logo porque a atitude extremada que costumam apresentar não resulta relativamente aos aumentos salariais, pois é um assunto em que (quase) todos compreendem as implicações e a necessidade de evoluções progressivas. Mas também porque o tema atravessa diferentes classes com interesses distintos, baralhando as posições identitárias em que os populismos medram.
É por esse motivo que, por vezes, questões que são essencialmente remuneratórias são apresentadas como tratando-se da defesa da dignidade da classe - veja-se o caso dos enfermeiros -, que é uma forma de afastar a discussão pública dos temas salariais e centrá-la nas dimensões afetivas ligadas ao ressentimento e à humilhação, mais suscetíveis de gerar clivagem e radicalização. Enquadrando o debate deste modo, os populistas conseguem navegar no caldo afetivo que lhes convém; focar nas remunerações obriga-os a posicionarem-se num quadro ideológico em que parte importante do seu mercado eleitoral não concorda com as suas posições.
Objetivos Inspiradores
Durante o Século XX, a social-democracia europeia apresentava propostas de uma vida melhor, um mundo mais justo e igualitário. Ainda que de modo imperfeito e incompleto, parte importante dessas propostas foram sendo concretizadas alcançando-se importantes conquistas sociais: escola pública, saúde pública universal, proteção na doença e na velhice, prestações sociais para os mais desfavorecidos. A função redistributiva do Estado, prescrita pelos sociais-democratas, foi assim progressivamente concretizada.
Porém, a partir de determinada altura, a ameaça de retrocesso nessas políticas levou a que se passasse de um discurso aspiracional, de conquistas a obter (construir o Estado social), para um discurso defensivo (proteção do Estado social), de resistência para preservar o que se havia conseguido.
O problema é que neste discurso não há ambição, não há promessa de uma vida melhor. O melhor que a social-democracia tem para oferecer parece ser, afinal, manter as coisas essencialmente como estão.
Ora, a maioria das pessoas ambiciona uma vida melhor. Se os sociais-democratas não têm uma proposta significativa para concretizar essas aspirações, as pessoas voltam-se para quem lhes prometa isso. Particularmente se experimentarem sentimentos de frustração e humilhação, que agudizam a sua necessidade de uma resposta radical. Mesmo que a proposta seja inconsistente, podem, pelo menos, acarinhar essa aspiração. Naturalmente, preferem viver com esperança (mesmo que ilusória) do que sem esperança.
A utilização de discursos aspiracionais, inspirados na confiança e na proposta de uma vida melhor é, por isso, essencial para combater os populismos[20]. É também importante para a social-democracia retomar a sua capacidade de atração eleitoral.
Em Portugal, o acordo de médio-prazo para aumentos ambiciosos mas realistas do salário mínimo, como conseguido na anterior legislatura, é dos melhores exemplos que podem ser dados. Largas faixas da população a auferirem apenas esse rendimento puderam ter um razoável otimismo de melhoria das suas condições de vida: quase 20 por cento de aumento salarial, muito mais do que isso no rendimento disponível.
Acresce que, de forma virtuosa, essa expectativa positiva estendeu-se também a outras faixas da população, que não estavam abrangidas por esses aumentos, mas que incorporaram a ideia de que existia um rumo global de melhoria dos rendimentos e da equidade social. Ou seja, o objetivo concreto que apenas abrangia alguns tornou-se representativo de um rumo para todos, um caminho que o país tomava, um desígnio comum.
Objetivos concretos definidos para o médio-prazo são muito importantes, particularmente se integrados numa visão da sociedade e do mundo que seja inspiradora. A olhar para o futuro com esperança. Com a confiança de quem quer construir um mundo (e uma vida) melhor.
Referências
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no. 02 // julho 2021
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