MEMÓRIAS COM FUTURO
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No atual momento de crise dos sistemas partidários, que se vive em diversos países europeus, o texto publicado por Eduardo Lourenço, na revista Finisterra, em 1991, assume hoje particular relevância.
Segundo o autor, a crise de representatividade que os partidos políticos enfrentam não afeta a ideia de Democracia, senão em termos futuros. Na opinião de Eduardo Lourenço esta crise faz parte do próprio mecanismo democrático. Os partidos conservadores, pela sua natureza histórica, são menos sensíveis ao fenómeno de enfraquecimento da função representativa dos seus eleitos, em contraponto com os partidos da esquerda “para quem individuo e representação são inseparáveis.” Um texto de grande perspicuidade que confere ainda mais sentido a este espaço de reflexão. |
La Politique c’est l’art de se mêler de ce qui no une regarde pas.
P. Valéry
Desde a sua origem grega até hoje a essência da Democracia é representação. A única coisa que variou foi a forma e o conteúdo dessa representação. Que a ordem política enquanto democrática seja de essência representativa exclui, à partida, que o Poder seja instância auto-assumida e auto-designada, qualquer que seja a forma desse poder: teocrática, guerreira ou monárquica. Mesmo sob estas figuras o Poder nunca dispensou instâncias de legitimação, quer de ordem transcendente, quer «a posteriori». Mesmo os sistemas totalitários que o nosso século conheceu não dispensaram tal legitimação e a figura monstruosa que assumiam não deriva de mais nada do que da derrapagem perversa de duas ordens de legitimação: a transcendente e a representativa. Nazismo e estalinismo quiseram-se, ao mesmo tempo, justificados como emanação das autênticas vontades coletivas (a de um povo ou de uma raça precisas), ou de uma classe com função englobante (o proletariado) e hiper-representativas. A crise de representação moderna - quer dizer a da suspeita, crítica e erradicação da forma clássica democrática dela, a Constituição americana e a saída da Revolução Francesa – começa e atinge o seu ponto culminante com a instauração dos partidos únicos (atroz contrassenso) segundo os modelos leninista, fascista e nazi.
Não me referi a este passado recente por historicismo neutro ou por gosto das explicações genéticas ou genealógicas, mas por estar convencido que a problemática actual da crise da representação que aqui nos reúne e que não é a da sua pura e simples eliminação ou travestimento na era totalitária, está intimamente vinculada à crise da Democracia que caracterizou o nosso século. O triunfo do modelo democrático sobre o modelo totalitário (pelo menos este espaço privilegiado que designamos por Ocidente), por mais natural que seja hoje a sua vigência em países onde ontem o não era (Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e países de Leste), não naturalizou a Democracia a ponto de a poupar a um permanente exame de consciência sobre os mecanismos da sua própria legitimação e, secundariamente, sobre as expressões mais adequadas à sua essência de forma política baseada sobre a representação. Se a contestação já não incide sobre a ideia mesma de Democracia, transferiu-se para as diversas formas que historicamente a encarnam, confluindo em última análise para o bom, mau ou inadequado funcionamento dos mecanismos de representação que permitem que ela seja não só a forma ideal do governo de uma sociedade, mas a expressão mais dinâmica e eficaz da vontade comum delegada.
Assim o que nós chamamos a crise de representação não afecta, senão em termos diferidos, a ideia de Democracia. É raro que alguém queira passar por anti-democrático. (E todavia é longa e tem a caução de algumas das mais célebres figuras do Ocidente, a crítica radical a tal ideia.) Mas não é menos raro que a Democracia suscite ou seja vivida, enquanto modelo ou figura do poder político mais conforme ao bom funcionamento da sociedade, com aquele fervor que as formas não-representativas, suspeitas ou até francamente perversas, têm provocado. A vivência democrática só adquire esse perfil quando é expressão de liberdades individuais, ou colectivas, duradoura, ou momentaneamente, coartadas, ou defesa ainda necessária contra o regresso da tirania defunta. Consolidada, convertida na atmosfera normal de uma sociedade, o sentimento de urgência que representou, a dificuldade intrínseca de a fazer funcionar com eficácia, diluem-se e, a Democracia, sem deixar de ser uma referência, um quadro, torna-se um hábito, um rito e um ritual em que o cidadão abandona simbolicamente o seu investimento representativo ativo, aquele que permite que o sistema democrático exista, para guardar apenas o lado passivo dele. O representante, mesmo sem o querer, concentra em si ou vê-se gratificado de todo o abandono de soberania da parte do representado. O que não impede o cidadão comum de, periodicamente, se lamentar do hiato que assim se cria entre ele, os interesses ou ideais objetivos enquanto sujeito do voto, e a tradução política e concreta que eles adquirem através da atuação do representante.
Pode ver-se neste hiato a primeira expressão do que, somatizado e constituindo já um fenómeno mais complexo ao nível das formas de representação democrática ao segundo ou terceiro grau, é propriamente a crise da representação e cujos atores não são o indivíduo-cidadão e o seu legítimo representante mas os partidos como actores automatizados da vida política enquanto tal. Ora como o primeiro hiato é inevitável - e não há utopia de «democracia direta» que o possa suprimir - pode dizer-se que a crise de representação faz parte do mecanismo democrático, qualquer que ele seja e não se vê como possa ser de outra maneira. Em Maio de 68, no espaço político onírico que lhe foi próprio, onde funcionava ao mesmo tempo os dois modelos utópicos do marxismo e do anarquismo, tentou curto-circuitar-se o famoso hiato entre a vontade individual e a sua representação. O representante ocupava o lugar do poder sob o olhar do representado que, o podia fazer regressar à base, ou assumir o seu papel. O tipo de poder que resultava de autêntico «regime de assembleia» auto-representativa era, como se sabe, aparente, e a pouca realidade que tinha só procedia de não ter outro conteúdo que a recusa lúdica, de um poder real diabolizado, decretado como nulo por heterogéneo ao sonho de uma sociedade auto-transparente onde a questão do Poder e da violência se evaporavam por magia. Todos sabemos que nem uma nem outra se evaporam, e a Democracia representativa - fórmula pleonástica - também não é o lugar dessa evaporação, nem dessa transparência, como o discurso idealista sobre a Democracia às vezes o pretende. É apenas, no melhor dos casos, a fórmula de organização que reduz, na medida do possível, o hiato original que está na base da representação e que institui o autor político em sentido próprio - e por via de consequências - as instâncias políticas no âmbito das quais age como cidadão à parte. Este cidadão é o «homo políticus» o trivialmente o político. A Política e a esfera de atuação e ao mesmo tempo o conjunto de atividades do político aos diversos níveis da sua função representativa. Da saúde do corpo político, da sua maior ou menor inadequação em serem os representantes das vontades, interesses, utopias dos representados depende da maior ou menor saúde desse corpo político. Quando se generaliza o sentimento de não representatividade ou de deficiente representatividade dos eleitos para serem os representantes dos interesses dos cidadãos, quando esses representantes começam a ser percebidos como um corpo político autónomo, cada vez mais afastado da função representativa que o institui, então tem lugar efetivamente a famigerada crise da representação.
Em tempos de instauração ou impregnação da sociedade ocidental pelo modelo democrático liberal - digamos, na época áurea do liberalismo, a Guizot, Disraeli, Cavour, Fontes Pereira de Melo - a representação era vivida como um tal privilégio a acrescentar ao que os candidatos do exercício do poder já possuíam, que não havia motivos para falar de crise da representação. Quando muito o objeto da sátira - que é sempre consagratória - era o representante, sobretudo o deputado provincial-parvenu que a carreira política de transfigurava. Balzac, Camilo, exerceram largamente a sua verve, o seu sarcasmo, ou ironia sobre esse novo pessoal político já então ridicularizado e invejado. Não entra nesse quadro, senão como massa ignara, vocacionada para comparsa de jogo político reservado a uma minoria, o representado, o Povo, que Bordalo Pinheiro simbolizou no Zé Povinho. Júlio Diniz, o mesmo Camilo, Eça deixaram-nos retratos dessa difícil invenção das regras do jogo do sufrágio - então não universal - entre nós. E os mesmos retratos se encontram na literatura dos outros países europeus. Os partidos que acolhiam ou suscitavam as candidaturas das notabilidades eram estruturas dúcteis, clubes de limitada clientela fidelisada que quase nada tem de comum nem com o sistema partidário característico da República em que o factor ideológico aguça o nível dos conflitos, nem naturalmente o dos partidos de massa surgidos depois do 25 de Abril. Utilizo de uma maneira conformista este conceito de partidos de massa porque se dá por entendido que numa sociedade assim denominada as formações políticas representativas são naturalmente de «massa». Na verdade massa - embora quantitativamente o fosso pouco - era o eleitorado do século XIX e o da República, tão profunda, por motivos culturais e sociais conhecidos, era a passividade dos eleitores dos tempos dos Conselheiros da Morgadinha dos Canaviais, de Afonso Costa o mesmo da época das eleições anunciadas de Salazar. Todavia, apesar deste handicap democrático, não é certo que no puro plano do vínculo mítico-afetivo entre representado e representante, o hiato fosse maior do que é hoje em que os partidos são mais do que os deputados, a instância de representação ou talvez melhor de identificação política. Ao nível frustre que era o das relações entre o eleitor ignaro de Trás-os-Montes, ou da Beira ou do Minho e o Senhor Conselheiro, ele sentia-se «representado», se assim se pode dizer, não por identificação com qualquer coisa da ordem de um programa político e de fins mais altos do Estado, mas pelo simples facto de poder recorrer a ele para a solução de algum problema grave, que envolvesse prepotência ou natural cumprimento de deveres em relação a essa coisa vaga que era então «o Estado», quer dizer, o juiz ou funcionário das finanças.
Paradoxalmente, hoje, em que a emergência do indivíduo, não só como sujeito teórico de direitos, mas como consciência de valores, suporia um maior controlo do eleitor sobre o eleito, é que o divórcio entre o cidadão comum e a chamada classe política adquiriu uma real visibilidade, a tal ponto que «a crise da representação» afinal não diz respeito à ideia mesma de representação (a não ser para certas formas marginais de expressão política) mas a esse divórcio entre o cidadão comum e a classe política ou, com mais justeza, entre os partidos e a opinião pública. Esse «divórcio», ao menos em Portugal, não conhece as expressões espetaculares que ele apresenta noutros países, com tradição mais democrática do que a nossa. A Democracia em Portugal, na sua versão moderna, e no seu percurso de cruzeiro, tem apenas uma dúzia de anos, ainda beneficia da sua novidade e, além do mais, o de nível de conflitualidade inter-partidário é fraco, mais de fachada de que de fundo, com a atenção do público polarizada pela ação do poder efetivo e bastante alheio aos «jogos políticos» de configuração partidária enquanto tal. Nada de comparável ao que se passa em Itália, por exemplo, em que a ação governamental, se assim se pode chamar, se concentra na gestão interna de um executivo em que figuram cinco partidos diferentes... O nosso ilustre convidado italiano nos exemplificará melhor do que eu me atreveria a fazê-lo como, apesar, da legendária capacidade italiana para governar o ingovernável, o tema da crise da representação não é um fantasma de nostálgicos de soluções anti-partidos, no passado ou no futuro, mas um problema real. Talvez aí mais do que em qualquer outro país europeu o conceito de classe política (que abrange um leque imenso de pessoas) com o que nisso vai de mundo autonomizado em relação à sociedade de que faz parte e de que em princípio é o elemento responsável e motor do projeto coletivo nas suas diversas ordens, tenha conotações tão inquietantes e seja já, em si, não a contrafacção de uma Democracia digna desse nome, mas pelo menos, de uma versão dela pouco exaltante. Se a Itália é o que é, é-o apesar dessa tentacular e narcísica classe política, absorvida quase exclusivamente em lutas de poderes dignas dos tempos das Senhorias e das várias repúblicas dos séculos XIV e XV. Os partidos são fins em si e os fins que aparentemente os norteiam são os da conservação e defesa da sua ação partidária a perpetuar-se como partie Prenante de parcelas de poderes-interesses desvinculados de qualquer perspetiva de interesse geral. Por isso não espanta que tenha surgido em Itália um fenómeno como o da Liga Lombarda que talvez não tenha futuro mas que encontra sucesso como ponto de encontro de gente que por motivos confusos, porventura contraditórios, não se sente representada por um sistema partidário que há meio século tem como justificação representá-la. Qualquer coisa de análogo se passa com o fenómeno Le Pen - ou passava-se - numa altura em que o seu sucesso repousava na crítica do monopólio da vida política francesa por quatro partidos (la band des 4), funcionando, segundo ele, como grupos de exclusão de uma boa parte do eleitorado e cúmplices, mau grado as suas querelas ritualizadas, do imobilismo profundo da sociedade francesa.
Talvez não surpreenda afirmar que, entre nós - onde nunca as coisas se passam como nos outros países - , haja uma relação tão visível entre o fenómeno classe política e a crise da representação enquanto essencialmente divórcio entre os partidos e a opinião pública. Em si, o fenómeno da classe política - que tanto se aplica ao mundo dos nossos políticos como ao de França ou dos Estados Unidos - significa, como em toda a parte, um objetivo distanciamento de uma certa espécie de actores sociais, gozando de um estatuto privilegiado, em princípio dedicados a tempo inteiro a coisa pública, quase funcionários da Política ou em vias de funcionalização. Esta situação que é nova, tem sido objecto de pouca reflexão séria. O conceito tem ao mesmo tempo ressonâncias vagamente críticas e administrativas. Mas no fim de contas é a constatação de um estatuto invejável e, ao contrário do século XIX, qualquer que seja a opinião pública sobre este ou aquele membro dessa classe política, é menos a sua função política de representante deste ou daquele setor de opinião ou de interesses desta ou daquela região que é percebida, do que a sua qualidade de homens depois do poder, real ou potencial. Neste sentido, um deputado nomeado pela União Nacional sentia-se ou era visto como mais representativo dos interesses regionais do círculo que o elegia, do que o deputado da nova Democracia. E também, em última análise, tais homens eram ou tinham mais poder efectivo que os nossos representantes atuais enquanto apenas deputados. É que entre eles e quem representam, entre eles e o Poder de facto, existe uma instância hiper-representativa, o Partido, sem o qual, em medida diversa segundo os partidos, mas inegável, não podiam aceder a um tal estatuto.
Por isso, a crise de representação que também entre nós existe, e é até mais profunda na medida em que está (ainda) ocultada, não se acha não se acha vinculada diretamente à classe política, nem mesmo aos partidos, mas está inteiramente ligada a ambos. Se a «classe política» ao fim e ao cabo goza de boa imagem de marca junto da opinião pública, os partidos enquanto tal gozam de excelente saúde. Tanto que alguns que mal existem e nem conseguem acabar. E outros que noutros paralelos morreram de inanição democrática, em Portugal resplandecem de exemplaridade e força democrática. E o cúmulo, é que nem se pode dizer que é quase deles que, verdadeiramente, se pode explicitar a crise da representação, o fenómeno objetivo do distanciamento entre o eleitorado e os seus representantes. É nos partidos canonicamente democráticos, naqueles que são os pilares em torno dos quais se articula a vida política portuguesa, que essa «crise» é manifesta. Refiro-me ao PSD e ao PS. Programas, projeto político, finalidades suprapartidárias, são o que de mais democrático se pode conceber. Todavia, enquanto expressões institucionalizas do pluralismo democrático, enquanto partidos, tendem a comportar-se como instâncias unitárias para quem a força que representam como instrumentos de conquista do poder é mais importante que a função representativa, o vínculo contraído, junto de um eleitorado preciso. Recentemente um desses partidos, já em vigília de armas por causa das eleições legislativas, fez compreender aos seus deputados ou membros qualificados, que não podiam ter «estados de alma». É o «partido» na sua realidade de «máquina partidária» vocacionado para o exercício pleno do poder - e não inicialmente no século XIX para encarar um dos três poderes do Estado, o legislativo - que concentra globalmente a função representativa, não o eleito a título individual. Digamos que, embora isto possa chocar, há uma «militarização partidária» que por mais conhecidas que sejam as causas ou a pertinência do diagnóstico não deixa de inquietar, porque de algum modo leva para o interior mesmo dos partidos a querela da representação ou a realidade da representação, base do comportamento democrático.
Pela natureza das coisas, pelas suas raízes históricas os partidos de Direita ou de vocação mais conservadora, são menos sensíveis a esse fenómeno de enfraquecimento da função representativa dos seus eleitos. Por um lado, pelo facto de, em geral, serem expressão de forças sociais e interesses económicos gozando de grande autonomia; por outro, e sem que haja contradição dada a homogeneidade objectiva dos interesses representados, não lhes pesa muito a abdicação factícia da sua autonomia pela delegação ou exasperação dela num chefe de partido, ocasionalmente carismático. Esta caporalização é, por assim dizer, natural e a crise de representação a que pode dar lugar, de um tipo diverso do que se pode observar nos partidos de Esquerda democrática, para quem indivíduo e representação são inseparáveis. Para eles o caminho é estreito entre o conforto da representação orgânica (que os PC tradicionalmente assumiram) e a fragmentação da representação até ao individualismo puro o que na acção prática se traduzia na forma de partidos ingovernáveis, como tão pitorescamente se diz. Daí que, paradoxalmente, segundo a minha opinião que é de puro amadorismo, nenhum partido precisa tanto de vinculação do representante ao representado, como por exemplo, um partido socialista. Não sendo historicamente partidos de representação de poderes efectivos, de interesses económicos autonomizados, os partidos de Esquerda, como contra-poder que foram na sua origem, só adquirem conteúdo positivo com a representatividade, o vínculo pessoal, afectivo, orgânico que se estabelece entre o representante e aqueles que o elegem. É o Partido que é a associação livre, o lugar onde as plurais representações se reforçam e em função das quais existe, e não os representantes e candidatos a sê-lo que são, por assim dizer, emanações do Partido por eles escolhidos antes ou independentemente da sua invenção pelos eleitores. Foi uma terrível - inevitável - perversão, ao menos para a representação democrática, o fascínio que exercem no nosso século aquela organização militante-militar, inventada para subverter uma ordem dada, a que teve o nome de «partido bolchevista», fascista ou nazi. Ninguém escapou a esse modelo que é de uma grande coerência e, em certas situações, de inegável eficácia, mas que é tudo menos democrático. Nem os partidos mais burgueses escaparam a esse modelo. Não há partido democrático europeu que se preze que não tenha o seu comité central ou qualquer coisa análoga. Há dias li que a Organização e Ecuménica das Igrejas também tinham o seu comité central, etc. A crise da representação e o estatuto da Democracia estão relacionados com estes modelos que não são fórmulas inocentes mas a quinta-essência, hoje apenas subliminar de uma deriva da representação que é deriva da própria democraticidade e da Democracia. Tal fenómeno é um subproduto da famosa participação das massas na vida política que não podendo, obviamente, exprimir-se de outra forma, delegam nos «microcosmos» em que se converteram cada uma das instâncias representativas das máquinas partidárias! Assim, os delegados converteram-se em executivos e o chefe a instância que controla esses executivos e em voluntário ou involuntário Big Brother, individual ou colectivo. Não é de estranhar que partidos que funcionam segundo este esquema, por mais democráticos que sejam os seus institutos, acabem por se transformar mais em estruturas auto-representativas do que em expressões da representação e com o tempo fortalezas com as suas regras e ritos que, quando não estão em situação de emergência (eleições, etc) ou em osmose com o poder efectivo, aquele que modifica o tecido administrativo e social, acabam por se parecer com o castelo onírico do Deserto dos Tártaros. Os partidos para não ficar, com o tempo, à margem do efectivo movimento e dinâmica da sociedade onde estão, relíquias ou arquitecturas pervertidas da época do ouro da representação, têm de regressar à base, de ser as estruturas de circularidade entre as vontades dos eleitores, o mais individualizadas possível, e não a expressão hipertrofiada de uma vontade geral que nada é fora da articulação entre os desejos e os interesses do representado e o seu mediador-representante, que não tem interesses próprios fora dos que representa. Não são os partidos que são a essência da Democracia, é a Democracia que é a essência dos partidos. Onde existe, a crise da representação é só o natural reflexo desta inversão das perspectivas.
(texto original publicado na Finisterra nº8)
P. Valéry
Desde a sua origem grega até hoje a essência da Democracia é representação. A única coisa que variou foi a forma e o conteúdo dessa representação. Que a ordem política enquanto democrática seja de essência representativa exclui, à partida, que o Poder seja instância auto-assumida e auto-designada, qualquer que seja a forma desse poder: teocrática, guerreira ou monárquica. Mesmo sob estas figuras o Poder nunca dispensou instâncias de legitimação, quer de ordem transcendente, quer «a posteriori». Mesmo os sistemas totalitários que o nosso século conheceu não dispensaram tal legitimação e a figura monstruosa que assumiam não deriva de mais nada do que da derrapagem perversa de duas ordens de legitimação: a transcendente e a representativa. Nazismo e estalinismo quiseram-se, ao mesmo tempo, justificados como emanação das autênticas vontades coletivas (a de um povo ou de uma raça precisas), ou de uma classe com função englobante (o proletariado) e hiper-representativas. A crise de representação moderna - quer dizer a da suspeita, crítica e erradicação da forma clássica democrática dela, a Constituição americana e a saída da Revolução Francesa – começa e atinge o seu ponto culminante com a instauração dos partidos únicos (atroz contrassenso) segundo os modelos leninista, fascista e nazi.
Não me referi a este passado recente por historicismo neutro ou por gosto das explicações genéticas ou genealógicas, mas por estar convencido que a problemática actual da crise da representação que aqui nos reúne e que não é a da sua pura e simples eliminação ou travestimento na era totalitária, está intimamente vinculada à crise da Democracia que caracterizou o nosso século. O triunfo do modelo democrático sobre o modelo totalitário (pelo menos este espaço privilegiado que designamos por Ocidente), por mais natural que seja hoje a sua vigência em países onde ontem o não era (Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e países de Leste), não naturalizou a Democracia a ponto de a poupar a um permanente exame de consciência sobre os mecanismos da sua própria legitimação e, secundariamente, sobre as expressões mais adequadas à sua essência de forma política baseada sobre a representação. Se a contestação já não incide sobre a ideia mesma de Democracia, transferiu-se para as diversas formas que historicamente a encarnam, confluindo em última análise para o bom, mau ou inadequado funcionamento dos mecanismos de representação que permitem que ela seja não só a forma ideal do governo de uma sociedade, mas a expressão mais dinâmica e eficaz da vontade comum delegada.
Assim o que nós chamamos a crise de representação não afecta, senão em termos diferidos, a ideia de Democracia. É raro que alguém queira passar por anti-democrático. (E todavia é longa e tem a caução de algumas das mais célebres figuras do Ocidente, a crítica radical a tal ideia.) Mas não é menos raro que a Democracia suscite ou seja vivida, enquanto modelo ou figura do poder político mais conforme ao bom funcionamento da sociedade, com aquele fervor que as formas não-representativas, suspeitas ou até francamente perversas, têm provocado. A vivência democrática só adquire esse perfil quando é expressão de liberdades individuais, ou colectivas, duradoura, ou momentaneamente, coartadas, ou defesa ainda necessária contra o regresso da tirania defunta. Consolidada, convertida na atmosfera normal de uma sociedade, o sentimento de urgência que representou, a dificuldade intrínseca de a fazer funcionar com eficácia, diluem-se e, a Democracia, sem deixar de ser uma referência, um quadro, torna-se um hábito, um rito e um ritual em que o cidadão abandona simbolicamente o seu investimento representativo ativo, aquele que permite que o sistema democrático exista, para guardar apenas o lado passivo dele. O representante, mesmo sem o querer, concentra em si ou vê-se gratificado de todo o abandono de soberania da parte do representado. O que não impede o cidadão comum de, periodicamente, se lamentar do hiato que assim se cria entre ele, os interesses ou ideais objetivos enquanto sujeito do voto, e a tradução política e concreta que eles adquirem através da atuação do representante.
Pode ver-se neste hiato a primeira expressão do que, somatizado e constituindo já um fenómeno mais complexo ao nível das formas de representação democrática ao segundo ou terceiro grau, é propriamente a crise da representação e cujos atores não são o indivíduo-cidadão e o seu legítimo representante mas os partidos como actores automatizados da vida política enquanto tal. Ora como o primeiro hiato é inevitável - e não há utopia de «democracia direta» que o possa suprimir - pode dizer-se que a crise de representação faz parte do mecanismo democrático, qualquer que ele seja e não se vê como possa ser de outra maneira. Em Maio de 68, no espaço político onírico que lhe foi próprio, onde funcionava ao mesmo tempo os dois modelos utópicos do marxismo e do anarquismo, tentou curto-circuitar-se o famoso hiato entre a vontade individual e a sua representação. O representante ocupava o lugar do poder sob o olhar do representado que, o podia fazer regressar à base, ou assumir o seu papel. O tipo de poder que resultava de autêntico «regime de assembleia» auto-representativa era, como se sabe, aparente, e a pouca realidade que tinha só procedia de não ter outro conteúdo que a recusa lúdica, de um poder real diabolizado, decretado como nulo por heterogéneo ao sonho de uma sociedade auto-transparente onde a questão do Poder e da violência se evaporavam por magia. Todos sabemos que nem uma nem outra se evaporam, e a Democracia representativa - fórmula pleonástica - também não é o lugar dessa evaporação, nem dessa transparência, como o discurso idealista sobre a Democracia às vezes o pretende. É apenas, no melhor dos casos, a fórmula de organização que reduz, na medida do possível, o hiato original que está na base da representação e que institui o autor político em sentido próprio - e por via de consequências - as instâncias políticas no âmbito das quais age como cidadão à parte. Este cidadão é o «homo políticus» o trivialmente o político. A Política e a esfera de atuação e ao mesmo tempo o conjunto de atividades do político aos diversos níveis da sua função representativa. Da saúde do corpo político, da sua maior ou menor inadequação em serem os representantes das vontades, interesses, utopias dos representados depende da maior ou menor saúde desse corpo político. Quando se generaliza o sentimento de não representatividade ou de deficiente representatividade dos eleitos para serem os representantes dos interesses dos cidadãos, quando esses representantes começam a ser percebidos como um corpo político autónomo, cada vez mais afastado da função representativa que o institui, então tem lugar efetivamente a famigerada crise da representação.
Em tempos de instauração ou impregnação da sociedade ocidental pelo modelo democrático liberal - digamos, na época áurea do liberalismo, a Guizot, Disraeli, Cavour, Fontes Pereira de Melo - a representação era vivida como um tal privilégio a acrescentar ao que os candidatos do exercício do poder já possuíam, que não havia motivos para falar de crise da representação. Quando muito o objeto da sátira - que é sempre consagratória - era o representante, sobretudo o deputado provincial-parvenu que a carreira política de transfigurava. Balzac, Camilo, exerceram largamente a sua verve, o seu sarcasmo, ou ironia sobre esse novo pessoal político já então ridicularizado e invejado. Não entra nesse quadro, senão como massa ignara, vocacionada para comparsa de jogo político reservado a uma minoria, o representado, o Povo, que Bordalo Pinheiro simbolizou no Zé Povinho. Júlio Diniz, o mesmo Camilo, Eça deixaram-nos retratos dessa difícil invenção das regras do jogo do sufrágio - então não universal - entre nós. E os mesmos retratos se encontram na literatura dos outros países europeus. Os partidos que acolhiam ou suscitavam as candidaturas das notabilidades eram estruturas dúcteis, clubes de limitada clientela fidelisada que quase nada tem de comum nem com o sistema partidário característico da República em que o factor ideológico aguça o nível dos conflitos, nem naturalmente o dos partidos de massa surgidos depois do 25 de Abril. Utilizo de uma maneira conformista este conceito de partidos de massa porque se dá por entendido que numa sociedade assim denominada as formações políticas representativas são naturalmente de «massa». Na verdade massa - embora quantitativamente o fosso pouco - era o eleitorado do século XIX e o da República, tão profunda, por motivos culturais e sociais conhecidos, era a passividade dos eleitores dos tempos dos Conselheiros da Morgadinha dos Canaviais, de Afonso Costa o mesmo da época das eleições anunciadas de Salazar. Todavia, apesar deste handicap democrático, não é certo que no puro plano do vínculo mítico-afetivo entre representado e representante, o hiato fosse maior do que é hoje em que os partidos são mais do que os deputados, a instância de representação ou talvez melhor de identificação política. Ao nível frustre que era o das relações entre o eleitor ignaro de Trás-os-Montes, ou da Beira ou do Minho e o Senhor Conselheiro, ele sentia-se «representado», se assim se pode dizer, não por identificação com qualquer coisa da ordem de um programa político e de fins mais altos do Estado, mas pelo simples facto de poder recorrer a ele para a solução de algum problema grave, que envolvesse prepotência ou natural cumprimento de deveres em relação a essa coisa vaga que era então «o Estado», quer dizer, o juiz ou funcionário das finanças.
Paradoxalmente, hoje, em que a emergência do indivíduo, não só como sujeito teórico de direitos, mas como consciência de valores, suporia um maior controlo do eleitor sobre o eleito, é que o divórcio entre o cidadão comum e a chamada classe política adquiriu uma real visibilidade, a tal ponto que «a crise da representação» afinal não diz respeito à ideia mesma de representação (a não ser para certas formas marginais de expressão política) mas a esse divórcio entre o cidadão comum e a classe política ou, com mais justeza, entre os partidos e a opinião pública. Esse «divórcio», ao menos em Portugal, não conhece as expressões espetaculares que ele apresenta noutros países, com tradição mais democrática do que a nossa. A Democracia em Portugal, na sua versão moderna, e no seu percurso de cruzeiro, tem apenas uma dúzia de anos, ainda beneficia da sua novidade e, além do mais, o de nível de conflitualidade inter-partidário é fraco, mais de fachada de que de fundo, com a atenção do público polarizada pela ação do poder efetivo e bastante alheio aos «jogos políticos» de configuração partidária enquanto tal. Nada de comparável ao que se passa em Itália, por exemplo, em que a ação governamental, se assim se pode chamar, se concentra na gestão interna de um executivo em que figuram cinco partidos diferentes... O nosso ilustre convidado italiano nos exemplificará melhor do que eu me atreveria a fazê-lo como, apesar, da legendária capacidade italiana para governar o ingovernável, o tema da crise da representação não é um fantasma de nostálgicos de soluções anti-partidos, no passado ou no futuro, mas um problema real. Talvez aí mais do que em qualquer outro país europeu o conceito de classe política (que abrange um leque imenso de pessoas) com o que nisso vai de mundo autonomizado em relação à sociedade de que faz parte e de que em princípio é o elemento responsável e motor do projeto coletivo nas suas diversas ordens, tenha conotações tão inquietantes e seja já, em si, não a contrafacção de uma Democracia digna desse nome, mas pelo menos, de uma versão dela pouco exaltante. Se a Itália é o que é, é-o apesar dessa tentacular e narcísica classe política, absorvida quase exclusivamente em lutas de poderes dignas dos tempos das Senhorias e das várias repúblicas dos séculos XIV e XV. Os partidos são fins em si e os fins que aparentemente os norteiam são os da conservação e defesa da sua ação partidária a perpetuar-se como partie Prenante de parcelas de poderes-interesses desvinculados de qualquer perspetiva de interesse geral. Por isso não espanta que tenha surgido em Itália um fenómeno como o da Liga Lombarda que talvez não tenha futuro mas que encontra sucesso como ponto de encontro de gente que por motivos confusos, porventura contraditórios, não se sente representada por um sistema partidário que há meio século tem como justificação representá-la. Qualquer coisa de análogo se passa com o fenómeno Le Pen - ou passava-se - numa altura em que o seu sucesso repousava na crítica do monopólio da vida política francesa por quatro partidos (la band des 4), funcionando, segundo ele, como grupos de exclusão de uma boa parte do eleitorado e cúmplices, mau grado as suas querelas ritualizadas, do imobilismo profundo da sociedade francesa.
Talvez não surpreenda afirmar que, entre nós - onde nunca as coisas se passam como nos outros países - , haja uma relação tão visível entre o fenómeno classe política e a crise da representação enquanto essencialmente divórcio entre os partidos e a opinião pública. Em si, o fenómeno da classe política - que tanto se aplica ao mundo dos nossos políticos como ao de França ou dos Estados Unidos - significa, como em toda a parte, um objetivo distanciamento de uma certa espécie de actores sociais, gozando de um estatuto privilegiado, em princípio dedicados a tempo inteiro a coisa pública, quase funcionários da Política ou em vias de funcionalização. Esta situação que é nova, tem sido objecto de pouca reflexão séria. O conceito tem ao mesmo tempo ressonâncias vagamente críticas e administrativas. Mas no fim de contas é a constatação de um estatuto invejável e, ao contrário do século XIX, qualquer que seja a opinião pública sobre este ou aquele membro dessa classe política, é menos a sua função política de representante deste ou daquele setor de opinião ou de interesses desta ou daquela região que é percebida, do que a sua qualidade de homens depois do poder, real ou potencial. Neste sentido, um deputado nomeado pela União Nacional sentia-se ou era visto como mais representativo dos interesses regionais do círculo que o elegia, do que o deputado da nova Democracia. E também, em última análise, tais homens eram ou tinham mais poder efectivo que os nossos representantes atuais enquanto apenas deputados. É que entre eles e quem representam, entre eles e o Poder de facto, existe uma instância hiper-representativa, o Partido, sem o qual, em medida diversa segundo os partidos, mas inegável, não podiam aceder a um tal estatuto.
Por isso, a crise de representação que também entre nós existe, e é até mais profunda na medida em que está (ainda) ocultada, não se acha não se acha vinculada diretamente à classe política, nem mesmo aos partidos, mas está inteiramente ligada a ambos. Se a «classe política» ao fim e ao cabo goza de boa imagem de marca junto da opinião pública, os partidos enquanto tal gozam de excelente saúde. Tanto que alguns que mal existem e nem conseguem acabar. E outros que noutros paralelos morreram de inanição democrática, em Portugal resplandecem de exemplaridade e força democrática. E o cúmulo, é que nem se pode dizer que é quase deles que, verdadeiramente, se pode explicitar a crise da representação, o fenómeno objetivo do distanciamento entre o eleitorado e os seus representantes. É nos partidos canonicamente democráticos, naqueles que são os pilares em torno dos quais se articula a vida política portuguesa, que essa «crise» é manifesta. Refiro-me ao PSD e ao PS. Programas, projeto político, finalidades suprapartidárias, são o que de mais democrático se pode conceber. Todavia, enquanto expressões institucionalizas do pluralismo democrático, enquanto partidos, tendem a comportar-se como instâncias unitárias para quem a força que representam como instrumentos de conquista do poder é mais importante que a função representativa, o vínculo contraído, junto de um eleitorado preciso. Recentemente um desses partidos, já em vigília de armas por causa das eleições legislativas, fez compreender aos seus deputados ou membros qualificados, que não podiam ter «estados de alma». É o «partido» na sua realidade de «máquina partidária» vocacionado para o exercício pleno do poder - e não inicialmente no século XIX para encarar um dos três poderes do Estado, o legislativo - que concentra globalmente a função representativa, não o eleito a título individual. Digamos que, embora isto possa chocar, há uma «militarização partidária» que por mais conhecidas que sejam as causas ou a pertinência do diagnóstico não deixa de inquietar, porque de algum modo leva para o interior mesmo dos partidos a querela da representação ou a realidade da representação, base do comportamento democrático.
Pela natureza das coisas, pelas suas raízes históricas os partidos de Direita ou de vocação mais conservadora, são menos sensíveis a esse fenómeno de enfraquecimento da função representativa dos seus eleitos. Por um lado, pelo facto de, em geral, serem expressão de forças sociais e interesses económicos gozando de grande autonomia; por outro, e sem que haja contradição dada a homogeneidade objectiva dos interesses representados, não lhes pesa muito a abdicação factícia da sua autonomia pela delegação ou exasperação dela num chefe de partido, ocasionalmente carismático. Esta caporalização é, por assim dizer, natural e a crise de representação a que pode dar lugar, de um tipo diverso do que se pode observar nos partidos de Esquerda democrática, para quem indivíduo e representação são inseparáveis. Para eles o caminho é estreito entre o conforto da representação orgânica (que os PC tradicionalmente assumiram) e a fragmentação da representação até ao individualismo puro o que na acção prática se traduzia na forma de partidos ingovernáveis, como tão pitorescamente se diz. Daí que, paradoxalmente, segundo a minha opinião que é de puro amadorismo, nenhum partido precisa tanto de vinculação do representante ao representado, como por exemplo, um partido socialista. Não sendo historicamente partidos de representação de poderes efectivos, de interesses económicos autonomizados, os partidos de Esquerda, como contra-poder que foram na sua origem, só adquirem conteúdo positivo com a representatividade, o vínculo pessoal, afectivo, orgânico que se estabelece entre o representante e aqueles que o elegem. É o Partido que é a associação livre, o lugar onde as plurais representações se reforçam e em função das quais existe, e não os representantes e candidatos a sê-lo que são, por assim dizer, emanações do Partido por eles escolhidos antes ou independentemente da sua invenção pelos eleitores. Foi uma terrível - inevitável - perversão, ao menos para a representação democrática, o fascínio que exercem no nosso século aquela organização militante-militar, inventada para subverter uma ordem dada, a que teve o nome de «partido bolchevista», fascista ou nazi. Ninguém escapou a esse modelo que é de uma grande coerência e, em certas situações, de inegável eficácia, mas que é tudo menos democrático. Nem os partidos mais burgueses escaparam a esse modelo. Não há partido democrático europeu que se preze que não tenha o seu comité central ou qualquer coisa análoga. Há dias li que a Organização e Ecuménica das Igrejas também tinham o seu comité central, etc. A crise da representação e o estatuto da Democracia estão relacionados com estes modelos que não são fórmulas inocentes mas a quinta-essência, hoje apenas subliminar de uma deriva da representação que é deriva da própria democraticidade e da Democracia. Tal fenómeno é um subproduto da famosa participação das massas na vida política que não podendo, obviamente, exprimir-se de outra forma, delegam nos «microcosmos» em que se converteram cada uma das instâncias representativas das máquinas partidárias! Assim, os delegados converteram-se em executivos e o chefe a instância que controla esses executivos e em voluntário ou involuntário Big Brother, individual ou colectivo. Não é de estranhar que partidos que funcionam segundo este esquema, por mais democráticos que sejam os seus institutos, acabem por se transformar mais em estruturas auto-representativas do que em expressões da representação e com o tempo fortalezas com as suas regras e ritos que, quando não estão em situação de emergência (eleições, etc) ou em osmose com o poder efectivo, aquele que modifica o tecido administrativo e social, acabam por se parecer com o castelo onírico do Deserto dos Tártaros. Os partidos para não ficar, com o tempo, à margem do efectivo movimento e dinâmica da sociedade onde estão, relíquias ou arquitecturas pervertidas da época do ouro da representação, têm de regressar à base, de ser as estruturas de circularidade entre as vontades dos eleitores, o mais individualizadas possível, e não a expressão hipertrofiada de uma vontade geral que nada é fora da articulação entre os desejos e os interesses do representado e o seu mediador-representante, que não tem interesses próprios fora dos que representa. Não são os partidos que são a essência da Democracia, é a Democracia que é a essência dos partidos. Onde existe, a crise da representação é só o natural reflexo desta inversão das perspectivas.
(texto original publicado na Finisterra nº8)
no. 03 // julho 2022
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FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
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