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PEDRO SILVA PEREIRA Presidente da Fundação Res Publica e Vice-Presidente do Parlamento Europeu. ________________________________ |
A EUROPA E A DESORDEM MUNDIAL |
RESUMO Com a invasão da Ucrânia, o imperialismo russo ressurgiu como ameaça, incluindo ameaça nuclear, desafiando a arquitetura de segurança europeia e obrigando a União Europeia a levar mais a sério a sua defesa. Isto significa valorizar a NATO e reforçar o investimento em defesa e segurança. Às dramáticas consequências humanitárias da guerra, somam-se sérias consequências económicas, agravadas pelas indispensáveis sanções. A dependência energética europeia e a espiral de inflação no setor da energia e dos bens agroalimentares exigem uma complexa adaptação das políticas económicas europeias, incluindo da política orçamental e monetária, mas salvaguardando os investimentos estratégicos na descarbonização da economia, na transição energética e na coesão social, assegurando a estabilidade nos mercados financeiros e não agravando as dinâmicas recessivas. Perante a “desordem mundial”, regressar à velha lógica de blocos da Guerra Fria não é uma opção. Em vez disso, temos de edificar uma nova ordem internacional justa e inclusiva. Só uma União Europeia com voz própria a pode liderar. ABSTRACT With the invasion of Ukraine, Russian imperialism has re-emerged as a threat, including a nuclear one, challenging the European security architecture and forcing the European Union to take its defense more seriously. This means the need to valuing NATO and reinforcing the investments in defense and security. In addition to the dramatic humanitarian consequences of the war, there are serious economic consequences, exacerbated by the indispensable sanctions. The European energy dependence and the spiral of inflation in the energy and agricultural-food sector require a complex adaptation of European economic policies in order to face this crisis. This must include adaptations on budgetary and monetary policy, but also safeguarding strategic investments in the decarbonization of the economy, energy transition and social cohesion, while at the same time ensuring stability in financial markets and not aggravating recessionary dynamics. In the face of this “world disorder”, it is not an option to return to the old Cold War block logic. Instead, we have to build a fair and inclusive new international order. Only a European Union with its own voice can lead it. |
1. A guerra está de volta à Europa e com isso o Mundo mudou, outra vez. Está agora à vista de todos que o velho sonho da paz perpétua, há muito alimentado no idealismo de Immanuel Kant, permanece tão longe como sempre esteve – e isso tem consequências sérias e inevitáveis.
Desde logo, é manifesto que, doravante, a arquitetura de segurança europeia, desenvolvida nas últimas décadas no ambiente de relativo otimismo típico do pós-Guerra Fria, terá de enfrentar a dura realidade das coisas: o imperialismo russo ressurgiu como ameaça, incluindo como ameaça nuclear. Este é o dado fundamental, absolutamente inescapável, que resulta da agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, em violação grosseira do Direito Internacional, da integridade territorial ucraniana e do próprio direito da Ucrânia a existir como Estado soberano, livre e independente.
O pesado e longo cadastro da Rússia de Putin no que se refere ao uso da força para alcançar os seus objetivos geoestratégicos, as ameaças militares explícitas dirigidas a países inofensivos como a Suécia e a Finlândia caso tenham a ousadia de concretizar a faculdade soberana de aderir à NATO e, acima de tudo, a extraordinária ligeireza com que Putin admitiu na atual crise o recurso ao seu devastador armamento nuclear, nada disso permite a irresponsabilidade de qualquer espécie de complacência. Definitivamente, a Europa tem de levar a sério os desafios colocados à sua defesa e segurança.
Três consequências derivam diretamente daqui.
Em primeiríssimo lugar, a reafirmação da importância vital da NATO e da centralidade geoestratégica da parceria transatlântica para assegurar um quadro de segurança suficientemente dissuasor. Todas as ilusões que alguns alimentavam sobre a desnecessidade de uma aliança defensiva ao serviço da segurança ficaram definitivamente desfeitas.
Em segundo lugar, por lamentável que isso seja, a confirmação da indispensabilidade de a Europa investir mais na sua própria defesa e segurança, desde logo com os membros europeus da NATO a convergirem para o cumprimento da meta de investimento em defesa de 2% do PIB.
Em terceiro lugar, a pertinência de reforçar a política de segurança e defesa comum da própria União Europeia, desenvolvendo a complementaridade dos investimentos militares, dando maior capacidade operacional à Força Conjunta de Intervenção Rápida, promovendo a investigação e desenvolvimento ao serviço da indústria europeia de defesa e aprofundando a cooperação em matéria de cibersegurança. Naturalmente, isto não significa que todos os investimentos em defesa se tenham subitamente tornado igualmente legítimos e razoáveis, pelo que, apesar das circunstâncias, se mantém a necessidade de assegurar sempre uma ponderada avaliação e um rigoroso escrutínio.
2. O apoio militar e as sanções sem precedentes que têm vindo a ser adotadas, em pacotes sucessivos, pela União Europeia e seus aliados na comunidade internacional são a resposta solidária com a Ucrânia que se impõe face à intolerável agressão russa, agora agravada por uma infindável sucessão de inegáveis crimes de guerra. São, também, a resposta possível por parte de quem sabe que sendo preciso reagir com firmeza, é necessário, igualmente, evitar a tragédia ainda maior de uma III Guerra Mundial, que teria agora a natureza de uma Guerra Nuclear devastadora para toda a Humanidade.
Naturalmente, nenhum pacote de sanções terá a capacidade de produzir o efeito mágico de forçar Putin a recuar imediatamente nas suas ambições, mas as sanções não deixarão de produzir um efeito poderoso de desgaste da economia russa e de pressão sobre os oligarcas do regime, a que acresce a crescente frustração militar face à surpreendente, admirável e heroica resistência dos ucranianos. O facto de, ao fim de quatro meses de guerra, a Rússia ter entrado em incumprimento nos mercados financeiros pela primeira vez nos últimos cem anos mostra bem como as sanções estão a ter um impacto forte. Que não haja ilusões: a prazo, a situação deixará de ser sustentável para a Rússia.
É verdade que alguns países da União Europeia, com a Alemanha à cabeça, enfrentam esta situação num quadro de elevada dependência energética da Rússia, sobretudo em matéria de gás e de petróleo – o que tem limitado a aplicação de sanções no setor da energia, estrategicamente essencial nas exportações russas e, consequentemente, na capacidade de financiamento do arsenal militar por parte da Rússia. Seja como for, é preciso reconhecer que nem a Alemanha hesitou em suspender de imediato o projeto do novo gasoduto Nord Stream 2, que iria duplicar as importações de gás russo, nem a Comissão Europeia deixou de traçar um ambicioso plano de aceleração da transição energética e de redução, a curto prazo, da dependência energética da União Europeia, o que acabará sempre por reduzir muito substancialmente – e futuramente eliminar – as importações de gás e de petróleo com origem na Rússia.
O Chanceler alemão, Olaf Scholz, começou por assegurar que a Alemanha está a fazer tudo o que é possível para se libertar das importações de energia russa, anunciando que deixaria de importar carvão “já neste Verão”, petróleo “até ao fim do ano” e gás “muito em breve”, logo que sejam construídos na costa norte da Alemanha os terminais necessários para receber e armazenar gás natural liquefeito de outras proveniências. Recentemente, a Alemanha declarou-se em condições de antecipar estes calendários e anunciou nova legislação que permitirá construir em apenas 10 meses um novo terminal de gás natural liquefeito, além de que avançará para a instalação de 4 terminais flutuantes já na próxima Primavera, os quais permitirão substituir pelo menos 70% das importações russas de gás. Assim, à medida que as alternativas forem ficando disponíveis, é inevitável que a Rússia se veja progressivamente excluída de uma boa parte do mercado internacional da energia, o que constituirá um golpe poderoso na sustentabilidade da economia russa.
3. As consequências da brutal invasão da Ucrânia pela Rússia - a que se junta a crise causada por uma imensa vaga de refugiados ucranianos – são muito profundas e graves no plano humanitário e social, mas também no plano económico, embora não possam ainda ser avaliadas em toda a sua extensão.
Desde logo, assistimos ao disparar galopante da inflação, em especial motivada pelo aumento do preço dos produtos energéticos, com destaque para o gás e para o petróleo. Já é patente, também, a perturbação nos fluxos comerciais e nas cadeias de abastecimento, em especial no setor agroalimentar e em outros onde a Ucrânia, e a própria Rússia, ocupam um lugar de especial relevo.
Numa altura em que a economia internacional e europeia procurava ainda recompor-se do choque da pandemia e se confrontava já com um complicado dilema quanto à forma de responder às tensões inflacionistas, eis que são revistas em baixa as previsões de crescimento económico e se assiste a uma agravada espiral de inflação – fazendo ressurgir o espectro da estagflação –, ao mesmo tempo que se torna imperioso tomar medidas para responder a estes novos desafios e apoiar os setores mais atingidos.
Para a União Europeia, este novo quadro exige capacidade de adaptação das políticas económicas de modo a não prejudicar nem a recuperação da economia, nem os objetivos estratégicos de médio prazo recentemente definidos. Isto significa várias coisas, todas elas muito importantes.
Em primeiro lugar, é preciso agir prioritariamente de modo a conter, na medida do possível, a escalada de preços no setor da energia, para garantir a sustentabilidade financeira das atividades económicas e das famílias, ao mesmo tempo que se aposta nas medidas estruturais dirigidas a reduzir a dependência energética europeia, aumentar o investimento nas energias renováveis e na eficiência energética, multiplicar as interligações energéticas e diversificar as importações de energia, num quadro de reforço da autonomia da economia europeia em domínios estratégicos.
Por isso mesmo, e em segundo lugar, é preciso garantir que o novo investimento que se impõe em matéria de defesa e segurança não é feito à custa dos recursos que foram já alocados para o “Green Deal”, a descarbonização da economia e a transição energética – agora mais urgentes do que nunca –, mas também para outros importantes objetivos estratégicos, como a transição digital e a coesão social e territorial.
Em terceiro lugar, é evidente que, neste quadro, a política orçamental europeia não podia dar-se ao luxo de recolocar em vigor, já em 2023, as metas de redução do défice e da dívida previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento. Por isso, foi já decidido manter, pelo menos por mais um ano, a chamada “general escape clause”, de modo a permitir a margem de manobra necessária nas políticas públicas – e, já agora, dar espaço para a necessária revisão substantiva das regras orçamentais à luz da experiência dos últimos anos.
Em quarto lugar, conviria que o Banco Central Europeu usasse de toda a prudência, gradualismo e flexibilidade para prolongar, na medida do possível, um alinhamento moderadamente acomodatício entre a política monetária e a política orçamental, atenta a natureza essencialmente conjuntural da inflação, em larga medida derivada da anormal turbulência causada pela guerra nos mercados da energia e de certas matérias-primas e bens alimentares, bem como nas cadeias de abastecimento. Uma precipitada e abrupta retirada dos estímulos à economia, além de se arriscar a ter um reduzido efeito sobre a inflação, poderia, no atual quadro de enorme complexidade e incerteza na economia global, fomentar ainda mais uma dinâmica recessiva, de consequências económico-sociais imprevisíveis e com potencial altamente perturbador para a estabilidade nos mercados financeiros. A demonstrá-lo está o facto de o simples anúncio das primeiras medidas de política monetária mais restritivas (ligeira subida das taxas de juro e cessação das compras líquidas de dívida pública) ter forçado o BCE a uma resposta de emergência para travar os sinais de escalada dos juros que imediatamente se fizeram sentir nos mercados de dívida soberana, atingindo sobretudo os países ditos “periféricos”, a começar pela Itália. Oxalá esta resposta seja suficiente.
Em quinto lugar, é preciso retomar a agenda de conclusão da União Económica e Monetária e da União Bancária, bem como de reforma do Mecanismo Europeu de Estabilidade, para que a União Europeia e a Zona Euro aprendam com as lições do passado e se preparem para resistir, de forma eficaz e solidária, às eventuais crises que possam surgir no futuro.
4. Importa notar que o quadro internacional que se desenha no seguimento da invasão da Ucrânia pela Rússia não se resume, como precipitadamente alguns sustentam, ao regresso à lógica de blocos própria da Guerra Fria. De facto, apesar das aparências, a confrontação bipolar não pode ser reproduzida na complexidade das atuais circunstâncias da comunidade internacional, onde evidentemente a China se afirma como potência e outras potências regionais procuram também o seu próprio espaço, muitas vezes escapando aos alinhamentos tradicionais. É verdade, o regresso da guerra à Europa fez desviar para o continente europeu as atenções que cada vez mais se dirigiam para a região do Indo-Pacífico, mas seria um erro grave escamotear a crescente centralidade dessa região para os equilíbrios geoestratégicos e para o dinamismo da economia global.
Josep Borrell, Vice-Presidente da Comissão Europeia e Alto Representante para os Assuntos Externos e Política de Segurança, tem sublinhado que a atual crise fez nascer uma União Europeia com uma nova consciência geoestratégica. Esse é um outro dado novo face ao quadro da Guerra Fria: a União Europeia, embora fiel à sua aliança transatlântica, tem condições para ter uma palavra própria a dizer na atual relação de forças multipolar. Aliás, perante esta autêntica “desordem mundial”, só a União Europeia poderá liderar a defesa de uma nova ordem internacional verdadeiramente justa e inclusiva, que não exclua continentes inteiros de responsabilidades que devem ser partilhadas.
Neste cenário, a valorização do multilateralismo e a cooperação estratégica – e necessariamente geoestratégica – entre a União Europeia e a Organização das Nações Unidas é de vital importância. A corajosa liderança do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, na pronta condenação da violação do Direito Internacional pela Rússia e as esmagadoras maiorias que se formaram no mesmo sentido na Assembleia-Geral das Nações Unidas, mostram bem que o quadro político multilateral deve ser valorizado, e não menosprezado, nessa nova ordem internacional que é necessário construir para enfrentar os desafios do presente e do futuro.
A tarefa, ao contrário do que possa parecer a partir de uma perspetiva europeia e ocidental, é bastante mais difícil do que muitos parecem pensar. Na verdade, já depois dos pronunciamentos claros da Assembleia-Geral das Nações Unidas contra a invasão russa da Ucrânia, a União Europeia, em duas importantes assembleias interparlamentares – com os países ACP (África, Caraíbas e Pacífico), em Estrasburgo, e com os países da América Latina, no âmbito da EUROLAT, em Buenos Aires – não conseguiu fazer aprovar qualquer resolução política de condenação da Rússia. Isto mostra bem como foi absolutamente notável o êxito diplomático conseguido por António Guterres no quadro das Nações Unidas, contornando com sucesso na Assembleia-Geral o bloqueio causado pelo veto da Rússia no Conselho de Segurança, sendo por isso totalmente injustas as críticas que alguns lhe dirigiram no pressuposto, absolutamente errado, de que seria tolerável, por um minuto que fosse, um Secretário-Geral da ONU neutral face a uma tão grosseira violação da Carta das Nações Unidas.
5. Estas e outras questões estiveram presentes na Conferência sobre o Futuro da Europa, lançada durante a Presidência Portuguesa e que se concluiu no passado dia 9 de maio, dia da Europa, em Estrasburgo.
Como não podia deixar de ser, a invasão da Ucrânia pela Rússia teve um significativo impacto nos debates, sobretudo em dois pontos essenciais: por um lado, o reconhecimento da necessidade de acelerar a transição energética e reduzir a dependência energética da União Europeia e, por outro, o reforço da ambição de uma Europa mais forte, não apenas no capítulo da defesa, mas ao serviço da paz, dos direitos humanos, do Estado de Direito, da regulação da globalização, do combate às alterações climáticas e do desenvolvimento sustentável.
É disso mesmo que precisamos: uma Europa com voz própria, numa nova ordem internacional inclusiva.
Desde logo, é manifesto que, doravante, a arquitetura de segurança europeia, desenvolvida nas últimas décadas no ambiente de relativo otimismo típico do pós-Guerra Fria, terá de enfrentar a dura realidade das coisas: o imperialismo russo ressurgiu como ameaça, incluindo como ameaça nuclear. Este é o dado fundamental, absolutamente inescapável, que resulta da agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, em violação grosseira do Direito Internacional, da integridade territorial ucraniana e do próprio direito da Ucrânia a existir como Estado soberano, livre e independente.
O pesado e longo cadastro da Rússia de Putin no que se refere ao uso da força para alcançar os seus objetivos geoestratégicos, as ameaças militares explícitas dirigidas a países inofensivos como a Suécia e a Finlândia caso tenham a ousadia de concretizar a faculdade soberana de aderir à NATO e, acima de tudo, a extraordinária ligeireza com que Putin admitiu na atual crise o recurso ao seu devastador armamento nuclear, nada disso permite a irresponsabilidade de qualquer espécie de complacência. Definitivamente, a Europa tem de levar a sério os desafios colocados à sua defesa e segurança.
Três consequências derivam diretamente daqui.
Em primeiríssimo lugar, a reafirmação da importância vital da NATO e da centralidade geoestratégica da parceria transatlântica para assegurar um quadro de segurança suficientemente dissuasor. Todas as ilusões que alguns alimentavam sobre a desnecessidade de uma aliança defensiva ao serviço da segurança ficaram definitivamente desfeitas.
Em segundo lugar, por lamentável que isso seja, a confirmação da indispensabilidade de a Europa investir mais na sua própria defesa e segurança, desde logo com os membros europeus da NATO a convergirem para o cumprimento da meta de investimento em defesa de 2% do PIB.
Em terceiro lugar, a pertinência de reforçar a política de segurança e defesa comum da própria União Europeia, desenvolvendo a complementaridade dos investimentos militares, dando maior capacidade operacional à Força Conjunta de Intervenção Rápida, promovendo a investigação e desenvolvimento ao serviço da indústria europeia de defesa e aprofundando a cooperação em matéria de cibersegurança. Naturalmente, isto não significa que todos os investimentos em defesa se tenham subitamente tornado igualmente legítimos e razoáveis, pelo que, apesar das circunstâncias, se mantém a necessidade de assegurar sempre uma ponderada avaliação e um rigoroso escrutínio.
2. O apoio militar e as sanções sem precedentes que têm vindo a ser adotadas, em pacotes sucessivos, pela União Europeia e seus aliados na comunidade internacional são a resposta solidária com a Ucrânia que se impõe face à intolerável agressão russa, agora agravada por uma infindável sucessão de inegáveis crimes de guerra. São, também, a resposta possível por parte de quem sabe que sendo preciso reagir com firmeza, é necessário, igualmente, evitar a tragédia ainda maior de uma III Guerra Mundial, que teria agora a natureza de uma Guerra Nuclear devastadora para toda a Humanidade.
Naturalmente, nenhum pacote de sanções terá a capacidade de produzir o efeito mágico de forçar Putin a recuar imediatamente nas suas ambições, mas as sanções não deixarão de produzir um efeito poderoso de desgaste da economia russa e de pressão sobre os oligarcas do regime, a que acresce a crescente frustração militar face à surpreendente, admirável e heroica resistência dos ucranianos. O facto de, ao fim de quatro meses de guerra, a Rússia ter entrado em incumprimento nos mercados financeiros pela primeira vez nos últimos cem anos mostra bem como as sanções estão a ter um impacto forte. Que não haja ilusões: a prazo, a situação deixará de ser sustentável para a Rússia.
É verdade que alguns países da União Europeia, com a Alemanha à cabeça, enfrentam esta situação num quadro de elevada dependência energética da Rússia, sobretudo em matéria de gás e de petróleo – o que tem limitado a aplicação de sanções no setor da energia, estrategicamente essencial nas exportações russas e, consequentemente, na capacidade de financiamento do arsenal militar por parte da Rússia. Seja como for, é preciso reconhecer que nem a Alemanha hesitou em suspender de imediato o projeto do novo gasoduto Nord Stream 2, que iria duplicar as importações de gás russo, nem a Comissão Europeia deixou de traçar um ambicioso plano de aceleração da transição energética e de redução, a curto prazo, da dependência energética da União Europeia, o que acabará sempre por reduzir muito substancialmente – e futuramente eliminar – as importações de gás e de petróleo com origem na Rússia.
O Chanceler alemão, Olaf Scholz, começou por assegurar que a Alemanha está a fazer tudo o que é possível para se libertar das importações de energia russa, anunciando que deixaria de importar carvão “já neste Verão”, petróleo “até ao fim do ano” e gás “muito em breve”, logo que sejam construídos na costa norte da Alemanha os terminais necessários para receber e armazenar gás natural liquefeito de outras proveniências. Recentemente, a Alemanha declarou-se em condições de antecipar estes calendários e anunciou nova legislação que permitirá construir em apenas 10 meses um novo terminal de gás natural liquefeito, além de que avançará para a instalação de 4 terminais flutuantes já na próxima Primavera, os quais permitirão substituir pelo menos 70% das importações russas de gás. Assim, à medida que as alternativas forem ficando disponíveis, é inevitável que a Rússia se veja progressivamente excluída de uma boa parte do mercado internacional da energia, o que constituirá um golpe poderoso na sustentabilidade da economia russa.
3. As consequências da brutal invasão da Ucrânia pela Rússia - a que se junta a crise causada por uma imensa vaga de refugiados ucranianos – são muito profundas e graves no plano humanitário e social, mas também no plano económico, embora não possam ainda ser avaliadas em toda a sua extensão.
Desde logo, assistimos ao disparar galopante da inflação, em especial motivada pelo aumento do preço dos produtos energéticos, com destaque para o gás e para o petróleo. Já é patente, também, a perturbação nos fluxos comerciais e nas cadeias de abastecimento, em especial no setor agroalimentar e em outros onde a Ucrânia, e a própria Rússia, ocupam um lugar de especial relevo.
Numa altura em que a economia internacional e europeia procurava ainda recompor-se do choque da pandemia e se confrontava já com um complicado dilema quanto à forma de responder às tensões inflacionistas, eis que são revistas em baixa as previsões de crescimento económico e se assiste a uma agravada espiral de inflação – fazendo ressurgir o espectro da estagflação –, ao mesmo tempo que se torna imperioso tomar medidas para responder a estes novos desafios e apoiar os setores mais atingidos.
Para a União Europeia, este novo quadro exige capacidade de adaptação das políticas económicas de modo a não prejudicar nem a recuperação da economia, nem os objetivos estratégicos de médio prazo recentemente definidos. Isto significa várias coisas, todas elas muito importantes.
Em primeiro lugar, é preciso agir prioritariamente de modo a conter, na medida do possível, a escalada de preços no setor da energia, para garantir a sustentabilidade financeira das atividades económicas e das famílias, ao mesmo tempo que se aposta nas medidas estruturais dirigidas a reduzir a dependência energética europeia, aumentar o investimento nas energias renováveis e na eficiência energética, multiplicar as interligações energéticas e diversificar as importações de energia, num quadro de reforço da autonomia da economia europeia em domínios estratégicos.
Por isso mesmo, e em segundo lugar, é preciso garantir que o novo investimento que se impõe em matéria de defesa e segurança não é feito à custa dos recursos que foram já alocados para o “Green Deal”, a descarbonização da economia e a transição energética – agora mais urgentes do que nunca –, mas também para outros importantes objetivos estratégicos, como a transição digital e a coesão social e territorial.
Em terceiro lugar, é evidente que, neste quadro, a política orçamental europeia não podia dar-se ao luxo de recolocar em vigor, já em 2023, as metas de redução do défice e da dívida previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento. Por isso, foi já decidido manter, pelo menos por mais um ano, a chamada “general escape clause”, de modo a permitir a margem de manobra necessária nas políticas públicas – e, já agora, dar espaço para a necessária revisão substantiva das regras orçamentais à luz da experiência dos últimos anos.
Em quarto lugar, conviria que o Banco Central Europeu usasse de toda a prudência, gradualismo e flexibilidade para prolongar, na medida do possível, um alinhamento moderadamente acomodatício entre a política monetária e a política orçamental, atenta a natureza essencialmente conjuntural da inflação, em larga medida derivada da anormal turbulência causada pela guerra nos mercados da energia e de certas matérias-primas e bens alimentares, bem como nas cadeias de abastecimento. Uma precipitada e abrupta retirada dos estímulos à economia, além de se arriscar a ter um reduzido efeito sobre a inflação, poderia, no atual quadro de enorme complexidade e incerteza na economia global, fomentar ainda mais uma dinâmica recessiva, de consequências económico-sociais imprevisíveis e com potencial altamente perturbador para a estabilidade nos mercados financeiros. A demonstrá-lo está o facto de o simples anúncio das primeiras medidas de política monetária mais restritivas (ligeira subida das taxas de juro e cessação das compras líquidas de dívida pública) ter forçado o BCE a uma resposta de emergência para travar os sinais de escalada dos juros que imediatamente se fizeram sentir nos mercados de dívida soberana, atingindo sobretudo os países ditos “periféricos”, a começar pela Itália. Oxalá esta resposta seja suficiente.
Em quinto lugar, é preciso retomar a agenda de conclusão da União Económica e Monetária e da União Bancária, bem como de reforma do Mecanismo Europeu de Estabilidade, para que a União Europeia e a Zona Euro aprendam com as lições do passado e se preparem para resistir, de forma eficaz e solidária, às eventuais crises que possam surgir no futuro.
4. Importa notar que o quadro internacional que se desenha no seguimento da invasão da Ucrânia pela Rússia não se resume, como precipitadamente alguns sustentam, ao regresso à lógica de blocos própria da Guerra Fria. De facto, apesar das aparências, a confrontação bipolar não pode ser reproduzida na complexidade das atuais circunstâncias da comunidade internacional, onde evidentemente a China se afirma como potência e outras potências regionais procuram também o seu próprio espaço, muitas vezes escapando aos alinhamentos tradicionais. É verdade, o regresso da guerra à Europa fez desviar para o continente europeu as atenções que cada vez mais se dirigiam para a região do Indo-Pacífico, mas seria um erro grave escamotear a crescente centralidade dessa região para os equilíbrios geoestratégicos e para o dinamismo da economia global.
Josep Borrell, Vice-Presidente da Comissão Europeia e Alto Representante para os Assuntos Externos e Política de Segurança, tem sublinhado que a atual crise fez nascer uma União Europeia com uma nova consciência geoestratégica. Esse é um outro dado novo face ao quadro da Guerra Fria: a União Europeia, embora fiel à sua aliança transatlântica, tem condições para ter uma palavra própria a dizer na atual relação de forças multipolar. Aliás, perante esta autêntica “desordem mundial”, só a União Europeia poderá liderar a defesa de uma nova ordem internacional verdadeiramente justa e inclusiva, que não exclua continentes inteiros de responsabilidades que devem ser partilhadas.
Neste cenário, a valorização do multilateralismo e a cooperação estratégica – e necessariamente geoestratégica – entre a União Europeia e a Organização das Nações Unidas é de vital importância. A corajosa liderança do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, na pronta condenação da violação do Direito Internacional pela Rússia e as esmagadoras maiorias que se formaram no mesmo sentido na Assembleia-Geral das Nações Unidas, mostram bem que o quadro político multilateral deve ser valorizado, e não menosprezado, nessa nova ordem internacional que é necessário construir para enfrentar os desafios do presente e do futuro.
A tarefa, ao contrário do que possa parecer a partir de uma perspetiva europeia e ocidental, é bastante mais difícil do que muitos parecem pensar. Na verdade, já depois dos pronunciamentos claros da Assembleia-Geral das Nações Unidas contra a invasão russa da Ucrânia, a União Europeia, em duas importantes assembleias interparlamentares – com os países ACP (África, Caraíbas e Pacífico), em Estrasburgo, e com os países da América Latina, no âmbito da EUROLAT, em Buenos Aires – não conseguiu fazer aprovar qualquer resolução política de condenação da Rússia. Isto mostra bem como foi absolutamente notável o êxito diplomático conseguido por António Guterres no quadro das Nações Unidas, contornando com sucesso na Assembleia-Geral o bloqueio causado pelo veto da Rússia no Conselho de Segurança, sendo por isso totalmente injustas as críticas que alguns lhe dirigiram no pressuposto, absolutamente errado, de que seria tolerável, por um minuto que fosse, um Secretário-Geral da ONU neutral face a uma tão grosseira violação da Carta das Nações Unidas.
5. Estas e outras questões estiveram presentes na Conferência sobre o Futuro da Europa, lançada durante a Presidência Portuguesa e que se concluiu no passado dia 9 de maio, dia da Europa, em Estrasburgo.
Como não podia deixar de ser, a invasão da Ucrânia pela Rússia teve um significativo impacto nos debates, sobretudo em dois pontos essenciais: por um lado, o reconhecimento da necessidade de acelerar a transição energética e reduzir a dependência energética da União Europeia e, por outro, o reforço da ambição de uma Europa mais forte, não apenas no capítulo da defesa, mas ao serviço da paz, dos direitos humanos, do Estado de Direito, da regulação da globalização, do combate às alterações climáticas e do desenvolvimento sustentável.
É disso mesmo que precisamos: uma Europa com voz própria, numa nova ordem internacional inclusiva.
no. 03 // julho 2022
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FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
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