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HUMBERTO ROSA Humberto Delgado Rosa é o Diretor para a Biodiversidade da DG Ambiente, Comissão Europeia, desde novembro de 2015. Antes disso e desde janeiro de 2012 foi diretor para a adaptação e tecnologia de baixo carbono na DG Ação Climática da CE. A missão do seu diretorado atual é proteger, conservar e aumentar o capital natural da União Europeia nas áreas da biodiversidade, natureza, uso do solo, florestas e ciclos de nutrientes. Humberto Rosa tem experiência relevante em política de ambiente europeia e internacional, especialmente quanto a biodiversidade e alterações climáticas. Foi Secretário de Estado do Ambiente do Governo de Portugal de março de 2005 a junho de 2011. De 1995 a 2002 foi assessor para assuntos do ambiente junto do Gabinete do Primeiro Ministro de Portugal. Humberto Rosa é doutorado em biologia evolutiva e licenciado em biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Humberto Rosa nasceu em Lisboa em 1960. ________________________________ |
COP26 – BALANÇO E DESAFIOS |
No âmbito da conferência-debate, COP26 – Balanço e Desafios, organizada pela Fundação Res Publica, a 9 de dezembro de 2021, publicamos os contributos dos oradores convidados, João Pedro Matos Fernandes, Ministro do Ambiente e da Ação Climática e Humberto Rosa, Diretor para a Biodiversidade da DG Ambiente, Comissão Europeia.
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Tendo acompanhado com interesse o desenvolvimento da COP26, começo por referir que não se pode esperar de uma cimeira como a COP aquilo que uma cimeira não pode dar. Gerou-se uma falsa expectativa em torno da COP26: foi a cimeira com maior atenção pública de sempre, o que fez muita gente esperar que 196 países chegassem à mesa das negociações e em 15 dias aparecessem com uma solução para o problema das alterações climáticas. Já houve cimeiras do clima que chamaram muita atenção, como a cimeira de Copenhaga em 2009, onde a expetativa era tão alta que, o que quer que acontecesse, iria sempre ser sentido como insuficiente – e além disso essa cimeira não correu lá muito bem... Na COP26 assistiu-se a algo parecido quanto a gestão de expectativas. Creio que quase todos os cidadãos do planeta devem ter ouvido a expressão COP26, o que denota como a atenção sobre o problema climático está hoje extremamente acrescida. Os efeitos das alterações climáticas estão hoje à vista de todos, são factos. A perceção pública sobre esses factos está muito mais presente porque as pessoas sentem os impactos dos fenómenos climáticos extremos, essas faturas que a Natureza nos envia. Desta forma, os problemas climáticos são mais sentidos pelas pessoas, e isso tem implicações políticas.
À parte esta introdução, do meu ponto de vista a Cimeira de Glasgow deu alguns resultados relevantes. Desde logo, o Pacto Climático de Glasgow é notável pelo que pede às partes no sentido de no fim de 2022 estarem alinhadas com objetivo de 1,5° centígrados, o que é muito ambicioso. Por outro lado, houve um reconhecimento de alguns progressos alcançados, mas também do muito que falta fazer para se poder ir mais além. Há outra inovação importante na Cimeira de Glasgow: foi a primeira vez em que os combustíveis fósseis tiveram o dedo apontado. É certo que houve aquela polémica final em que a Índia e China vieram dizer não queriam phase out mas antes phase down, ou seja, queriam referir um abandono progressivo em vez de um abandono total. Mas mesmo assim, tudo ponderado parece-me que se obtiveram resultados muito interessantes: a questão de dotar o Acordo de Paris de um livro de regras claro e com o alinhamento do prazo de 5 anos para que os países revejam a ambição das suas contribuições; a regulação dos mercados internacionais de carbono; a transparência no reporting, verificação e monitorização dos compromissos, que é fundamental para o Acordo de Paris poder resultar. Também o financiamento acrescido em várias frentes e, não menos importante, a questão da adaptação às alterações climáticas, bem como a aceitação de um diálogo futuro sobre um tema sensível que é o de perdas e danos, quando alguns países ou regiões estejam para lá do potencial de se adaptar; a ação para o metano, que é um muito importante gás com efeito de estufa; o reconhecimento pleno de que não se resolve o puzzle climático sem resolver o puzzle da perda de biodiversidade; a abertura para um diálogo continuado sobre o papel do oceano… Na COP de Glasgow, quando escalpelizamos, encontramos muitos componentes bons e interessantes.
Há um outro aspeto que eu gostaria de abordar, que é o do papel da União Europeia. Creio que é justo dizer que a União Europeia é, de há muitos anos a esta parte, o farol do mundo em política climática. Isto acontece porque temos uma opinião pública maioritariamente favorável a medidas avançadas para abordar o problema, e também porque vemos algumas vantagens em abordá-lo. Não é só porque somos bons samaritanos e queremos salvar o mundo, é também porque os que se movem mais depressa têm alguns potenciais benefícios económicos, e também sociais, em preparar-se para um mundo mais descarbonizado. Este papel liderante da União Europeia está hoje reforçado, do meu ponto de vista, graças ao Pacto Ecológico. Este pacto é de facto uma grande novidade também em clima, com ambição reforçada, mas o seu alcance vai bem para lá do clima propriamente dito. Temos hoje no mundo uma crise ambiental mais vasta, uma verdadeira crise ecológica. Não é só uma crise climática: há uma crise climática, há uma crise de perda da biodiversidade, há uma crise poluição, há uma crise de uso ineficiente de recursos. Por outras palavras, há uma crise criada pela influência humana na biosfera, esta camadinha fininha que é o lubrificante da vida no planeta, e da vida humana também. Não temos tecnologia, nem capital humano ou financeiro para substituir os serviços que o capital natural nos dá, e que estão em degradação desde há muito, acelerada e globalizada nas últimas décadas.
O Pacto Ecológico tem esse reconhecimento e fez com que tanto o clima como o resto do ambiente ganhassem uma importância acrescida num contexto político, inclusive porque o Pacto Ecológico é assumidamente também uma estratégia económica e uma estratégia social, com o seu moto de uma transição justa. De facto, não se pode deixar uns para trás enquanto outros avançam para o novo mundo que lá vem. Em suma, é um facto que há um papel de liderança da União Europeia pelo exemplo, e que em Glasgow se manifestou quer aos microfones formais das negociações, quer nos muitos contactos de bastidores em torno delas.
Chamava ainda a atenção para mais dois ou três tópicos. Um deles é o seguinte: se é verdade que temos uma crise que vai para lá do clima, e que não se pode resolver apenas uma parte da crise ecológica sem abordar as suas outras dimensões, então há uma outra cimeira importante que lá vem. É a Cimeira da Biodiversidade, a chamada COP15 da Convenção da Diversidade Biológica, que está prevista para acontecer na China em 2022. Também nessa cimeira temos de conseguir fazer algo diferente do que até aqui. Até agora o que aconteceu? Houve um acordo global para parar a perda de biodiversidade até ao fim de 2010, mas quando chegámos a esse ano estava-se longe de sequer abrandar a perda. Fez-se então um novo acordo global para parar a perda de biodiversidade até 2020, mas quando chegámos lá concluímos que não só não se parou a perda como estávamos mesmo na pior situação de sempre, com o risco de um milhão de espécies desaparecerem e se extinguirem em poucas décadas se nada se alterasse. Claro está que não podemos fazer agora um acordo global para 2030 que simplesmente diga que vamos parar a perda de biodiversidade até lá! Um novo pacto global pela natureza tem de ter componentes diferentes, e uma dessas componentes vai ser similar ao que se conseguiu para o clima: precisamos de um sistema reforçado de monitorização e verificação de compromissos para com a biodiversidade. É decerto mais fácil medir a concentração de CO2 na atmosfera do que medir diversidade de espécies ou serviços de ecossistemas, mas a ciência já nos dá uma ajuda séria nesse sentido. Portanto chamo a atenção para este tema da biodiversidade, que vai manter-se no ar e continuar a crescer em importância política.
Há um tema em particular que liga diretamente o clima e a biodiversidade, não só materialmente mas também politicamente, porque as pessoas o sentem assim e o encaram com emoções fortes: as florestas. Quando se vê as nossas florestas a arder sem controlo como em 2017 ou coalas queimados nos fogos australianos, percebemos que a proteção das florestas abrange clima e biodiversidade, temas que aliás estão de facto ligados também em muitas outras vertentes, como os oceanos ou o uso dos solos. Este tema da crise ecológica não se irá embora porque as pessoas já o sentem, sentem-no crescentemente como uma ameaça à sua própria saúde e qualidade de vida, como quando há extremos de calor, quando há fogos florestais, inundações, secas, etc. Ainda que cada extremo climático não venha necessariamente das alterações climáticas, esses extremos são sentidos pela opinião pública enquanto consequência delas. Por isso entendo que este tema que discutimos não se esvairá politicamente. Para aqueles que pudessem pensar que o Pacto Ecológico Europeu teria sido um devaneio e que talvez desaparecesse da agenda da próxima Comissão Europeia, desiludam-se. Basta lembrar como o último verão foi fértil em fogos florestais e inundações em tantas partes do mundo para ver nisso um garante em que isso não vai acontecer.
Como é que o mundo vai então progredir e conseguir lidar com estes temas tão abrangentes e difíceis? Do meu ponto de vista, a COP26 também deu um sinal importante quanto aos rumos da política ambiental multilateral. Vimos por exemplo como alguns subgrupos de países se puseram de acordo para anunciar conjuntamente objetivos ambiciosos para proteger as suas florestas e para assegurar a não desflorestação. Relativamente a algumas declarações proferidas a respeito da paragem da desflorestação, como no caso do Brasil no contexto da sua liderança atual, talvez a questão da credibilidade se possa colocar, mas há sinais de que este assunto será levado a sério por várias das partes. Veja-se o caso da União Europeia, que se tem mantido fiel ao espírito e letra do seu Pacto Ecológico. Por exemplo, a estratégia florestal da EU para 2030 tem muito mais clima e biodiversidade do que antes, sem desconsideração alguma pelos aspetos económicos e sociais que dependem de florestas saudáveis e resilientes. Ou note-se o pacote que a Comissão Europeia apresentou recentemente com vista a impedir que haja produtos no mercado europeu que contribuam para a desflorestação ou degradação das florestas, e que me parece um exemplo firme de como podemos influenciar o contexto global através do nosso mercado e regulamentação. Esse pacote aplica-se quer a produtos importados, quer a produtos produzidos na Europa, em plena coerência não só com as regras da Organização Mundial do Comércio, mas também com o que foi anunciado no Pacto Ecológico.
Por outro lado, os Estados Unidos e a China tiveram na COP26 um diálogo climático bilateral entre si, o que tem muito peso por serem os dois países com mais emissões. Face a isto, estou convencido de que veremos mais sub-acordos entre grupos de países que partilhem a mesma visão e ambição em dimensões próprias da crise ecológica, incluindo biodiversidade e alterações climáticas. Por outro lado, se tivermos em conta certos fatores como a política ambiental do atual governo americano, a política anunciada do novo governo alemão, influente no contexto europeu e que tem agora uma agenda climática e ambiental reforçada; e a dinâmica de uma opinião pública sensibilizada – tudo isto são sinais de iremos continuar a ver desenvolvimentos positivos com vista a lidar com a crise ecológica global. Certamente que a União Europeia se manterá no lote dos ambiciosos, e espero que Portugal também. Na verdade, é quanto ao ambiente que melhor se aplica a famosa máxima de que ‘não há alternativa’: não temos alternativa para garantir a qualidade da vida humana senão recuperar a boa condição da biosfera, porque não há outra e dependemos estritamente dela.
O papel da ciência tem sido fundamental para a questão climática. De facto, a política climática é uma filha direta da ciência climática, não por a ciência e os cientistas determinarem ou deverem determinar o rumo das sociedades – isso é algo que cabe aos decisores políticos –, mas sem o trabalho do IPCC, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, e agora o equivalente para a biodiversidade que é o IPBES, o Painel Intergovernamental para a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas, não estaríamos onde estamos em termos de conhecer os problemas, suas causas e soluções.
Sobre a questão da importância do poder local na sensibilização e ação nestas questões, tenho assistido fascinado ao ver quantas cidades europeias, e não só europeias, têm políticas de ambiente e sustentabilidade cada vez mais avançadas. Se o mundo fosse gerido como uma grande cidade se calhar estaríamos em melhores circunstâncias, porque o poder local está mais perto das pessoas, das suas vontades e das implicações que a degradação do ambiente tem para elas. É nas cidades que muitas das políticas para melhorar transportes, gestão de resíduos, gestão de água, adaptação local, infraestrutura verde, etc. têm mais para ser feito e com um efeito positivo múltiplo e direto nas pessoas.
Tentado responder à questão de fundo, de se tudo o que impõe fazer é de facto fazível, se haverá apoio e determinação política para tudo, ou já será tarde de mais? O tema é filosoficamente relevante, porque efetivamente já houve situações na história da humanidade em que civilizações colapsaram, local ou regionalmente, por terem destruído o ambiente à sua volta de que dependiam. Há muitas antigas ruínas de cidades que hoje estão rodeadas de deserto, um deserto que resultou da ação do ser humano ao sobre-explorar e degradar aquilo de que dependia. E hoje vemos sinais desse caminho a nível global… Quem tenha a ideia de que podemos resolver tudo com tecnologia, construir umas máquinas para começar a produzir água, ou retirar carbono da atmosfera, ou seja o que for, não faz ideia da dimensão real da nossa dependência de serviços dos ecossistemas. A verdade é que estamos mesmo dependentes da Biosfera e não temos feito outra coisa, à medida que nos fomos desenvolvendo e expandindo no mundo, com todos os sucessos que alcançámos, do que degradar a biosfera, a atmosfera, os oceanos, o território. É importante salientar que o planeta Terra enquanto tal não tem nenhum problema especial com isso. Daqui a uns milhões de anos a biosfera regenerar-se-á como fez em várias outras crises registadas no passado geológico da Terra, é uma questão de tempo e de evolução. Agora nós, seres humanos, que medimos os nossos assuntos em anos, décadas ou séculos e não em milhões de anos, só dispomos mesmo da biosfera que temos nesta faixa temporal em que emergimos e vivemos. Surge então este tema politicamente sensível: irá haver apoio e condições políticas para as mudanças radicais e de fundo que se impõem? Nós, seres humanos, não somos nem anjos, nem computadores; reagimos com razões e emoções, e reagimos em particular ao que nos causa dor ou bem-estar. E aqui é que entra o dilema: será que é preciso uma maior, muito maior, degradação das condições de vida no planeta para haver condições políticas suficientes para assumir uma mudança transformativa? É aqui que entra uma reflexão de fundo e onde vejo fatores de preocupação. Temos hoje muita juventude qualificada, angustiada, com acesso a muita informação, com pouca esperança, mesmo excessivamente sem esperança, e temos de encontrar um discurso e programa político, quer para essa juventude, quer para aqueles que se possam sentir deserdados por esses novos amanhã que cantam, mas que põem em causa práticas que porventura foram identitárias para muitos.
À parte esta introdução, do meu ponto de vista a Cimeira de Glasgow deu alguns resultados relevantes. Desde logo, o Pacto Climático de Glasgow é notável pelo que pede às partes no sentido de no fim de 2022 estarem alinhadas com objetivo de 1,5° centígrados, o que é muito ambicioso. Por outro lado, houve um reconhecimento de alguns progressos alcançados, mas também do muito que falta fazer para se poder ir mais além. Há outra inovação importante na Cimeira de Glasgow: foi a primeira vez em que os combustíveis fósseis tiveram o dedo apontado. É certo que houve aquela polémica final em que a Índia e China vieram dizer não queriam phase out mas antes phase down, ou seja, queriam referir um abandono progressivo em vez de um abandono total. Mas mesmo assim, tudo ponderado parece-me que se obtiveram resultados muito interessantes: a questão de dotar o Acordo de Paris de um livro de regras claro e com o alinhamento do prazo de 5 anos para que os países revejam a ambição das suas contribuições; a regulação dos mercados internacionais de carbono; a transparência no reporting, verificação e monitorização dos compromissos, que é fundamental para o Acordo de Paris poder resultar. Também o financiamento acrescido em várias frentes e, não menos importante, a questão da adaptação às alterações climáticas, bem como a aceitação de um diálogo futuro sobre um tema sensível que é o de perdas e danos, quando alguns países ou regiões estejam para lá do potencial de se adaptar; a ação para o metano, que é um muito importante gás com efeito de estufa; o reconhecimento pleno de que não se resolve o puzzle climático sem resolver o puzzle da perda de biodiversidade; a abertura para um diálogo continuado sobre o papel do oceano… Na COP de Glasgow, quando escalpelizamos, encontramos muitos componentes bons e interessantes.
Há um outro aspeto que eu gostaria de abordar, que é o do papel da União Europeia. Creio que é justo dizer que a União Europeia é, de há muitos anos a esta parte, o farol do mundo em política climática. Isto acontece porque temos uma opinião pública maioritariamente favorável a medidas avançadas para abordar o problema, e também porque vemos algumas vantagens em abordá-lo. Não é só porque somos bons samaritanos e queremos salvar o mundo, é também porque os que se movem mais depressa têm alguns potenciais benefícios económicos, e também sociais, em preparar-se para um mundo mais descarbonizado. Este papel liderante da União Europeia está hoje reforçado, do meu ponto de vista, graças ao Pacto Ecológico. Este pacto é de facto uma grande novidade também em clima, com ambição reforçada, mas o seu alcance vai bem para lá do clima propriamente dito. Temos hoje no mundo uma crise ambiental mais vasta, uma verdadeira crise ecológica. Não é só uma crise climática: há uma crise climática, há uma crise de perda da biodiversidade, há uma crise poluição, há uma crise de uso ineficiente de recursos. Por outras palavras, há uma crise criada pela influência humana na biosfera, esta camadinha fininha que é o lubrificante da vida no planeta, e da vida humana também. Não temos tecnologia, nem capital humano ou financeiro para substituir os serviços que o capital natural nos dá, e que estão em degradação desde há muito, acelerada e globalizada nas últimas décadas.
O Pacto Ecológico tem esse reconhecimento e fez com que tanto o clima como o resto do ambiente ganhassem uma importância acrescida num contexto político, inclusive porque o Pacto Ecológico é assumidamente também uma estratégia económica e uma estratégia social, com o seu moto de uma transição justa. De facto, não se pode deixar uns para trás enquanto outros avançam para o novo mundo que lá vem. Em suma, é um facto que há um papel de liderança da União Europeia pelo exemplo, e que em Glasgow se manifestou quer aos microfones formais das negociações, quer nos muitos contactos de bastidores em torno delas.
Chamava ainda a atenção para mais dois ou três tópicos. Um deles é o seguinte: se é verdade que temos uma crise que vai para lá do clima, e que não se pode resolver apenas uma parte da crise ecológica sem abordar as suas outras dimensões, então há uma outra cimeira importante que lá vem. É a Cimeira da Biodiversidade, a chamada COP15 da Convenção da Diversidade Biológica, que está prevista para acontecer na China em 2022. Também nessa cimeira temos de conseguir fazer algo diferente do que até aqui. Até agora o que aconteceu? Houve um acordo global para parar a perda de biodiversidade até ao fim de 2010, mas quando chegámos a esse ano estava-se longe de sequer abrandar a perda. Fez-se então um novo acordo global para parar a perda de biodiversidade até 2020, mas quando chegámos lá concluímos que não só não se parou a perda como estávamos mesmo na pior situação de sempre, com o risco de um milhão de espécies desaparecerem e se extinguirem em poucas décadas se nada se alterasse. Claro está que não podemos fazer agora um acordo global para 2030 que simplesmente diga que vamos parar a perda de biodiversidade até lá! Um novo pacto global pela natureza tem de ter componentes diferentes, e uma dessas componentes vai ser similar ao que se conseguiu para o clima: precisamos de um sistema reforçado de monitorização e verificação de compromissos para com a biodiversidade. É decerto mais fácil medir a concentração de CO2 na atmosfera do que medir diversidade de espécies ou serviços de ecossistemas, mas a ciência já nos dá uma ajuda séria nesse sentido. Portanto chamo a atenção para este tema da biodiversidade, que vai manter-se no ar e continuar a crescer em importância política.
Há um tema em particular que liga diretamente o clima e a biodiversidade, não só materialmente mas também politicamente, porque as pessoas o sentem assim e o encaram com emoções fortes: as florestas. Quando se vê as nossas florestas a arder sem controlo como em 2017 ou coalas queimados nos fogos australianos, percebemos que a proteção das florestas abrange clima e biodiversidade, temas que aliás estão de facto ligados também em muitas outras vertentes, como os oceanos ou o uso dos solos. Este tema da crise ecológica não se irá embora porque as pessoas já o sentem, sentem-no crescentemente como uma ameaça à sua própria saúde e qualidade de vida, como quando há extremos de calor, quando há fogos florestais, inundações, secas, etc. Ainda que cada extremo climático não venha necessariamente das alterações climáticas, esses extremos são sentidos pela opinião pública enquanto consequência delas. Por isso entendo que este tema que discutimos não se esvairá politicamente. Para aqueles que pudessem pensar que o Pacto Ecológico Europeu teria sido um devaneio e que talvez desaparecesse da agenda da próxima Comissão Europeia, desiludam-se. Basta lembrar como o último verão foi fértil em fogos florestais e inundações em tantas partes do mundo para ver nisso um garante em que isso não vai acontecer.
Como é que o mundo vai então progredir e conseguir lidar com estes temas tão abrangentes e difíceis? Do meu ponto de vista, a COP26 também deu um sinal importante quanto aos rumos da política ambiental multilateral. Vimos por exemplo como alguns subgrupos de países se puseram de acordo para anunciar conjuntamente objetivos ambiciosos para proteger as suas florestas e para assegurar a não desflorestação. Relativamente a algumas declarações proferidas a respeito da paragem da desflorestação, como no caso do Brasil no contexto da sua liderança atual, talvez a questão da credibilidade se possa colocar, mas há sinais de que este assunto será levado a sério por várias das partes. Veja-se o caso da União Europeia, que se tem mantido fiel ao espírito e letra do seu Pacto Ecológico. Por exemplo, a estratégia florestal da EU para 2030 tem muito mais clima e biodiversidade do que antes, sem desconsideração alguma pelos aspetos económicos e sociais que dependem de florestas saudáveis e resilientes. Ou note-se o pacote que a Comissão Europeia apresentou recentemente com vista a impedir que haja produtos no mercado europeu que contribuam para a desflorestação ou degradação das florestas, e que me parece um exemplo firme de como podemos influenciar o contexto global através do nosso mercado e regulamentação. Esse pacote aplica-se quer a produtos importados, quer a produtos produzidos na Europa, em plena coerência não só com as regras da Organização Mundial do Comércio, mas também com o que foi anunciado no Pacto Ecológico.
Por outro lado, os Estados Unidos e a China tiveram na COP26 um diálogo climático bilateral entre si, o que tem muito peso por serem os dois países com mais emissões. Face a isto, estou convencido de que veremos mais sub-acordos entre grupos de países que partilhem a mesma visão e ambição em dimensões próprias da crise ecológica, incluindo biodiversidade e alterações climáticas. Por outro lado, se tivermos em conta certos fatores como a política ambiental do atual governo americano, a política anunciada do novo governo alemão, influente no contexto europeu e que tem agora uma agenda climática e ambiental reforçada; e a dinâmica de uma opinião pública sensibilizada – tudo isto são sinais de iremos continuar a ver desenvolvimentos positivos com vista a lidar com a crise ecológica global. Certamente que a União Europeia se manterá no lote dos ambiciosos, e espero que Portugal também. Na verdade, é quanto ao ambiente que melhor se aplica a famosa máxima de que ‘não há alternativa’: não temos alternativa para garantir a qualidade da vida humana senão recuperar a boa condição da biosfera, porque não há outra e dependemos estritamente dela.
O papel da ciência tem sido fundamental para a questão climática. De facto, a política climática é uma filha direta da ciência climática, não por a ciência e os cientistas determinarem ou deverem determinar o rumo das sociedades – isso é algo que cabe aos decisores políticos –, mas sem o trabalho do IPCC, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, e agora o equivalente para a biodiversidade que é o IPBES, o Painel Intergovernamental para a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas, não estaríamos onde estamos em termos de conhecer os problemas, suas causas e soluções.
Sobre a questão da importância do poder local na sensibilização e ação nestas questões, tenho assistido fascinado ao ver quantas cidades europeias, e não só europeias, têm políticas de ambiente e sustentabilidade cada vez mais avançadas. Se o mundo fosse gerido como uma grande cidade se calhar estaríamos em melhores circunstâncias, porque o poder local está mais perto das pessoas, das suas vontades e das implicações que a degradação do ambiente tem para elas. É nas cidades que muitas das políticas para melhorar transportes, gestão de resíduos, gestão de água, adaptação local, infraestrutura verde, etc. têm mais para ser feito e com um efeito positivo múltiplo e direto nas pessoas.
Tentado responder à questão de fundo, de se tudo o que impõe fazer é de facto fazível, se haverá apoio e determinação política para tudo, ou já será tarde de mais? O tema é filosoficamente relevante, porque efetivamente já houve situações na história da humanidade em que civilizações colapsaram, local ou regionalmente, por terem destruído o ambiente à sua volta de que dependiam. Há muitas antigas ruínas de cidades que hoje estão rodeadas de deserto, um deserto que resultou da ação do ser humano ao sobre-explorar e degradar aquilo de que dependia. E hoje vemos sinais desse caminho a nível global… Quem tenha a ideia de que podemos resolver tudo com tecnologia, construir umas máquinas para começar a produzir água, ou retirar carbono da atmosfera, ou seja o que for, não faz ideia da dimensão real da nossa dependência de serviços dos ecossistemas. A verdade é que estamos mesmo dependentes da Biosfera e não temos feito outra coisa, à medida que nos fomos desenvolvendo e expandindo no mundo, com todos os sucessos que alcançámos, do que degradar a biosfera, a atmosfera, os oceanos, o território. É importante salientar que o planeta Terra enquanto tal não tem nenhum problema especial com isso. Daqui a uns milhões de anos a biosfera regenerar-se-á como fez em várias outras crises registadas no passado geológico da Terra, é uma questão de tempo e de evolução. Agora nós, seres humanos, que medimos os nossos assuntos em anos, décadas ou séculos e não em milhões de anos, só dispomos mesmo da biosfera que temos nesta faixa temporal em que emergimos e vivemos. Surge então este tema politicamente sensível: irá haver apoio e condições políticas para as mudanças radicais e de fundo que se impõem? Nós, seres humanos, não somos nem anjos, nem computadores; reagimos com razões e emoções, e reagimos em particular ao que nos causa dor ou bem-estar. E aqui é que entra o dilema: será que é preciso uma maior, muito maior, degradação das condições de vida no planeta para haver condições políticas suficientes para assumir uma mudança transformativa? É aqui que entra uma reflexão de fundo e onde vejo fatores de preocupação. Temos hoje muita juventude qualificada, angustiada, com acesso a muita informação, com pouca esperança, mesmo excessivamente sem esperança, e temos de encontrar um discurso e programa político, quer para essa juventude, quer para aqueles que se possam sentir deserdados por esses novos amanhã que cantam, mas que põem em causa práticas que porventura foram identitárias para muitos.
no. 03 // julho 2022
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FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
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