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PEDRO SILVA PEREIRA Presidente da Fundação Res Publica e Vice-Presidente do Parlamento Europeu. ________________________________ |
UM FUTURO PARA A EUROPA |
RESUMO A Presidência Portuguesa conseguiu um sucesso político notável ao tornar-se uma verdadeira “força de desbloqueio” da Conferência sobre o Futuro da Europa. Portugal conseguiu superar um embaraçoso impasse político e a Conferência está finalmente em marcha. A sua primeira ambição é dar voz aos cidadãos sobre o futuro da Europa, num exercício de democracia participativa, sem resultados pré-definidos. Entre uma visão que aposta na reforma dos Tratados para um improvável impulso federal e uma visão conservadora que aspira a uma mera confirmação das políticas em curso, é necessária uma “terceira via” que explore o potencial de reformas institucionais ainda disponível no Tratado de Lisboa e tire consequências da crise, indo ao encontro das expetativas dos cidadãos com novas políticas europeias de promoção da saúde e de combate às desigualdades. ABSTRACT The Portuguese Presidency achieved a remarkable political success by becoming the real and decisive force behind the unlocking of the Conference on the Future of Europe. Portugal managed to overcome an embarrassing political impasse and the Conference is finally underway. Its primary ambition is to give citizens a voice on the future of Europe, an exercise of participative democracy, without any anticipated preliminary results. Between a vision that pushes for a reform of the Treaties in an attempt for an unlikely federal impulse and a conservative vision that aspires to a mere confirmation of current policies, we need a “third way”. This third way is needed to explore the potential for institutional reforms still available in the Treaty of Lisbon and take the consequences of the crisis in order to meet citizens’ expectations by launching new European policies to promote health and fight inequalities. |
1. Conferência sobre o Futuro da Europa: Portugal, uma força de desbloqueio
A Conferência sobre o Futuro da Europa está finalmente em marcha e é justo reconhecer que isso constitui, só por si, um êxito assinalável da Presidência Portuguesa do Conselho Europeu.
Na verdade, quando a Presidência Portuguesa começou, em janeiro deste ano, a organização desta importante Conferência - que pretende mobilizar os cidadãos para um grande debate sobre o futuro do projeto europeu - estava ainda mergulhada num embaraçoso impasse que se arrastava há mais de um ano no Conselho, com os líderes dos 27 a serem incapazes de se entender e chegar a acordo com o Parlamento Europeu sobre a liderança política da iniciativa. A própria Presidência Alemã, apesar de repetidas tentativas, não conseguiu construir uma solução aceitável para o problema, pelo que foi ainda uma situação de total impasse aquela que Portugal recebeu de herança.
Felizmente, aquilo que a poderosa Presidência Alemã não conseguiu em seis meses, conseguiu a Presidência Portuguesa em pouco mais de seis semanas: um acordo interinstitucional entre as três instituições europeias - Conselho, Parlamento Europeu e Comissão Europeia - para a organização e copresidência da Conferência, em pé de igualdade. Isso permitiu que o Primeiro-Ministro António Costa fosse a Bruxelas, no dia 10 de março, assinar uma Declaração Conjunta com a Presidente da Comissão, Ursula Von Der Leyen, e o Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, firmando o compromisso político para a organização da Conferência e desfazendo quaisquer dúvidas sobre a realização da iniciativa. Assim, com paciência e habilidade, Portugal conseguiu superar este longo impasse político e, graças a isso, a 9 de maio, dia da Europa, teve lugar, em Estrasburgo, a tão ansiada Sessão de Abertura.
Entretanto, todo o processo de organização da Conferência foi posto de pé: foi instituído o Comité Executivo organizador; foi aprovado o regulamento da Conferência, definida a sua agenda e elaborado o respetivo calendário; foi criada e disponibilizada, desde 19 de abril, a plataforma online para a participação dos cidadãos (contando já com cerca de 20 mil participações e mais de mil eventos de debate anunciados) e começou a preparação dos “painéis de cidadãos” (que se iniciam em setembro), como fóruns descentralizados de debate das recomendações a dirigir ao plenário da Conferência. A culminar este intenso trabalho organizativo, teve lugar em Estrasburgo, no dia 19 de junho, a primeira sessão plenária da Conferência sobre o Futuro da Europa - em que tive a honra de participar como membro da delegação do Grupo dos Socialistas e Democratas (S&D) do Parlamento Europeu.
Os factos não mentem: em menos de seis meses, a Presidência Portuguesa não só se afirmou como “força de desbloqueio” da Conferência sobre o Futuro da Europa, como foi capaz de dinamizar a organização da Conferência e de a deixar em pleno funcionamento.
2. Uma Conferência para quê?
Motivos não faltam para convidar os cidadãos e as instituições europeias para um debate sério e aprofundado sobre o futuro do projeto europeu.
Confrontada com duas graves crises quase consecutivas - a crise financeira de 2007-2011 e a crise pandémica de 2020-2021- que causaram um sério retrocesso económico-social e agravaram muito profundamente o desemprego, a pobreza e as desigualdades; abalada pelo Brexit; sistematicamente dividida na gestão das migrações e na resposta aos refugiados; atingida nos seus valores fundadores pela deriva iliberal contra o Estado de Direito por parte de alguns dos seus membros do Leste e, sobretudo, alvo de um ataque frontal pelo preocupante crescimento da extrema-direita e do populismo eurocético, nacionalista e xenófobo, a União Europeia precisa urgentemente de construir os compromissos políticos necessários para corresponder mais e melhor às expetativas dos seus cidadãos.
Para isso, faz todo o sentido começar por dar a voz aos próprios cidadãos, aos parceiros sociais e às estruturas representativas da sociedade civil no quadro de um grande processo de auscultação e debate - e é essa, justamente, a primeira ambição da Conferência sobre o Futuro da Europa.
Assim, num primeiro momento, as instituições políticas europeias colocar-se-ão em verdadeiro “modo de escuta” para que sejam os cidadãos, através de contribuições online e da discussão temática em “painéis de cidadãos”, a identificar preocupações e expetativas, opções e propostas. Desse processo resultarão, ao que se espera, um conjunto de recomendações que serão trazidas a debate no plenário da Conferência e nos respetivos grupos de trabalho, até chegar à aprovação de conclusões políticas nos termos acordados nas regras de procedimento do evento.
3. Um exercício de democracia representativa e participativa
O que se pretende, fique claro - para que não haja equívocos - não é, de modo algum, um exercício de democracia direta, assente numa qualquer desconfiança sobre a suficiência da legitimidade própria da democracia representativa em que se fundam as instituições políticas europeias. Pelo contrário, tem-se plena consciência de que as decisões políticas que hão de ser tomadas em resultado desta Conferência sobre o Futuro da Europa só podem ter plena legitimidade democrática através da validação pelas instituições democráticas representativas, já que são as únicas democraticamente mandatadas pelos cidadãos.
Não é menos certo, no entanto, que a democracia não se esgota no exercício periódico do direito de voto e, nessa medida, não há dúvida de que uma democracia representativa mais viva deve ser, necessariamente, uma democracia mais participada, desenvolvendo-se como verdadeira democracia participativa. É, afinal, o que se pretende com a Conferência sobre o Futuro da Europa: que a democracia representativa europeia possa beneficiar do contributo da participação dos cidadãos.
Ninguém ignora, naturalmente, que as opiniões recolhidas na plataforma online, por muito significativas que sejam, não permitirão aferir, com rigor democrático, da formação de maiorias políticas neste ou naquele sentido, tal como é sabido que os 800 cidadãos selecionados, segundo critérios objetivos de amostragem social, para participar nos “painéis de cidadãos” não serão detentores de nenhum mandato democrático que lhes confira especial legitimidade para a representação dos seus concidadãos. Todavia, nada disso retira utilidade, interesse e importância a este amplo processo participativo, que permitirá dinamizar a democracia europeia e dar a conhecer melhor as reais expetativas dos cidadãos quanto ao futuro do projeto europeu.
Que os cidadãos têm coisas a dizer sobre o futuro da Europa, não há hoje dúvida alguma. Segundo os dados do Eurobarómetro do passado mês de março - um mega-inquérito de opinião à escala europeia - 92% dos inquiridos querem que as suas opiniões sejam mais tidas em conta nas decisões relativas ao futuro da Europa e 76% concordam que a realização da Conferência sobre o Futuro da Europa representa um progresso significativo nesse sentido.
Mais recentemente, o Eurobarómetro da Primavera revelou que apenas 48% dos europeus têm uma imagem muito ou razoavelmente positiva da União Europeia, sendo que 23% dizem ser a favor da forma como a União Europeia tem sido concretizada até agora, enquanto 47% apoiam o projeto europeu, mas defendem que sejam trilhados outros caminhos. Apesar de um largo espetro de neutralidade ou indiferença (35%) e de apenas se terem registado 17% de respostas negativas, deve reconhecer-se um grau de insatisfação não negligenciável, que convive com um potencial importante de disponibilidade para contribuir para um melhor futuro do projeto europeu.
Digno de nota é o facto deste panorama se apresentar bem distinto no caso de Portugal, onde 84% dos cidadãos (38 pontos percentuais acima da média europeia!) declaram ter uma imagem muito ou razoavelmente positiva da União Europeia, sendo que são 14% os que têm uma atitude neutral e apenas 2% confessam ter uma imagem negativa. Por outro lado, 33% dos portugueses manifestam-se a favor da forma como a União Europeia tem sido concretizada até agora e 58% declaram apoio ao projeto europeu, mas defendem alterações na forma como o projeto europeu tem sido conduzido. Enquanto isso, apenas 9% se afirmam eurocéticos.
Em suma, se é inequívoco um fortíssimo apoio dos portugueses ao projeto europeu, a um nível que chega mesmo a ser o mais elevado de toda a União Europeia, não deixa de haver também em Portugal o desejo de que sejam introduzidas mudanças. É para esse debate que os cidadãos são agora convocados.
4. Um debate aberto e livre, sem resultados pré-definidos
O exercício de dar voz aos cidadãos para discutir o futuro da Europa só será sério se permitir um debate realmente livre, sem condicionamentos nem resultados pré-definidos. Evidentemente, é legítimo que cada um - cidadão, parceiro social ou família política - possa enunciar as suas expetativas e propostas para a Conferência e para o futuro da Europa, mas a precipitada definição de “critérios de sucesso” para avaliar aqueles que serão os resultados do debate - seja a reforma dos Tratados, a introdução das listas transnacionais ou qualquer outra concreta alteração institucional ou de políticas - seria desrespeitar à partida o que se pretende que seja uma genuína auscultação das opiniões e propostas dos cidadãos e da sociedade civil.
Naturalmente, para que possa ser produtivo este debate não pode ser anárquico e não dispensa, por isso, a definição de uma agenda e uma certa organização temática, ainda que formulada em termos muito amplos.
Assim, na plataforma online disponível para a participação dos cidadãos estão previstos 10 temas: i) Alterações climáticas e ambiente; ii) Saúde; iii) Uma economia mais forte, justiça social e emprego; iv) A União Europeia no Mundo; v) Valores e direitos, Estado de Direito e segurança; vi) Transformação digital; vii) Democracia europeia; viii) Migrações; ix) Educação, cultura, juventude e desporto; x) Outras ideias.
Subsequentemente, as ideias e propostas recolhidas serão discutidas em quatro “painéis de cidadãos”, assim distribuídos: i) Valores e direitos, Estado de Direito e segurança; ii) Alterações climáticas, ambiente e saúde; iii) Uma economia mais forte, justiça social, emprego, transformação digital, educação, cultura, juventude e desporto; iv) A União Europeia no Mundo e migrações.
Finalmente, o próprio plenário da Conferência funcionará também por via de nove grupos de trabalho que, por uma questão de coerência, serão organizados tematicamente em conformidade com os já referidos primeiros nove núcleos temáticos previstos na plataforma online.
Como se pode ver, esta estrutura, se visa de alguma forma ordenar o debate, não deixa de permitir a discussão, com toda a liberdade e sem qualquer condicionamento, de qualquer assunto relevante. Nessa medida, pode dizer-se que a Conferência sobre o Futuro da Europa será, de facto, o que os cidadãos quiserem fazer dela.
Não será de estranhar que a resposta da União Europeia à crise que hoje atravessamos marque a identificação de preocupações, expetativas e propostas. A julgar pelo Eurobarómetro da Primavera, os portugueses - que, aliás, também fazem uma avaliação mais positiva (53%) sobre a resposta europeia à crise do que a média europeia (48%) - defendem três grandes prioridades nesta matéria: primeiro, assegurar o acesso rápido a vacinas seguras e eficazes para todos os cidadãos da União Europeia; segundo, fazer mais investimento na economia para uma recuperação sustentável, justa e equitativa em todos os Estados-membros da União Europeia e, terceiro, estabelecer uma estratégia europeia para enfrentar crises semelhantes no futuro. Neste último aspeto, uma percentagem impressionante de portugueses - 96% - manifestam-se claramente a favor de um reforço das competências da União Europeia na área da saúde.
Veremos se estas preocupações dos portugueses têm eco nas conclusões finais da Conferência.
5. Duas visões sobre a Conferência sobre o Futuro da Europa
Duas visões aparentemente opostas sobre o que deve ser a Conferência sobre o Futuro da Europa têm estado em confronto no debate europeu.
De um lado, estão aqueles que vêm nesta Conferência a oportunidade para impulsionar a revisão dos Tratados e operar uma série de reformas institucionais de pendor federalista ou, ao menos, no sentido de uma mais profunda integração política. Não faltam sugestões: eliminação da regra da unanimidade em certas decisões do Conselho, designadamente em matéria de política externa e, porventura, de política fiscal; criação, em sede de reforma da lei eleitoral europeia, das chamadas “listas transnacionais” (em que às circunscrições eleitorais nacionais se somaria um círculo eleitoral europeu); reforço da figura dos denominados “spitzenkandidaten” (candidatos das várias famílias políticas europeias a Presidente da Comissão), que passariam a ser necessariamente os cabeças-de-lista das referidas listas transnacionais; ajustamento nas regras da governação económica e na arquitetura da União Económica e Monetária (abrindo caminho para os Eurobonds ou outras formas de mutualização da dívida, a par da criação de uma verdadeira capacidade orçamental e de uma função de estabilização); revisão do mandato do Banco Central Europeu; reforço dos mecanismos de defesa dos valores europeus e de garantia do Estado de Direito; atribuição de poder de iniciativa legislativa ao Parlamento Europeu e alargamento do alcance das comissões parlamentares de inquérito; criação de uma autêntica União Para a Saúde.
Do outro lado, temos aqueles que rejeitam qualquer impulso federalista ou movimento significativo no sentido de mais integração, mas também aqueles que, simplesmente, descreem da viabilidade política de reunir a unanimidade necessária para uma reforma dos Tratados ou que consideram os eternos debates sobre reformas institucionais como um autêntico vício instalado na chamada “bolha de Bruxelas”, que diz pouco ou nada ao comum dos cidadãos. A alternativa, dizem, seria fazer da Conferência sobre o Futuro da Europa um debate não sobre as instituições, mas essencialmente sobre as políticas, como sejam a resposta à pandemia, a recuperação económica, o pilar europeu dos direitos sociais, o “Green Deal”, o combate às alterações climáticas, a transição digital e o desenvolvimento sustentável.
Deve reconhecer-se que nenhuma destas visões, assim sumariamente enunciadas, se apresenta particularmente promissora.
Embora nenhum cenário deva ser excluído à partida, tem de reconhecer-se que são tão vincadas as diferentes sensibilidades sobre a dinâmica da integração europeia que se afigura realmente baixa a probabilidade de construir a unanimidade indispensável para rever substancialmente os Tratados. Não se trata, portanto, de negar a pertinência que poderiam ter diversas benfeitorias institucionais, nem de retirar legitimidade a quem as defenda, mas de reconhecer a evidência política de múltiplas minorias de bloqueio. De facto, não é difícil adivinhar que se uns rejeitariam soluções de tipo federal que diminuíssem as atuais reservas de soberania dos Estados, outros opor-se-iam, em nome do “risco moral”, a qualquer modificação substantiva, num sentido mais solidário, da governação económica e da arquitetura do Euro, enquanto outros ainda se atravessariam, preventivamente, no caminho de qualquer reforço dos mecanismos sancionatórios por violação do Estado de Direito.
É certo, estão também sobre a mesa e na agenda da Conferência propostas de reforma da lei eleitoral europeia que, em princípio, não careceriam necessariamente de revisão dos Tratados, como é o caso da criação das chamadas listas transnacionais, que têm sido apresentadas como forma de reforçar a dimensão verdadeiramente europeia das eleições para o Parlamento Europeu e de proporcionar um suplemento de legitimidade democrática aos candidatos a Presidente da Comissão Europeia, que seriam forçosamente os cabeças-de-lista dessas listas transnacionais.
Sucede que também essa reforma da lei eleitoral europeia - além dos múltiplos problemas que levanta, que não cumpre analisar aqui - carece da necessária aprovação unânime no Conselho, o que não se afigura de todo fácil. Na verdade, não só os países pequenos e médios tendem a desconfiar da posição que seria reservada aos seus candidatos pelos partidos europeus nessas listas para a circunscrição conjunta, mas também muitos recusam a ideia de forçar os cidadãos a votar em listas de candidatos estrangeiros que não conhecem e, em muitos casos, não podem sequer razoavelmente conhecer pela simples razão de que não falam a sua língua.
Por essa razão, aliás, quando se tratou, na legislatura anterior, de estabelecer a recomposição do Parlamento Europeu após o Brexit - em resolução de que fui relator - o próprio Parlamento Europeu rejeitou a minha proposta de, mesmo sem antecipar pronunciamentos sobre a proposta das listas transnacionais, destinar os 46 lugares que ficariam vagos não só para futuros alargamentos (o que foi aprovado), mas também para uma eventual futura criação de listas transnacionais em sede de revisão da lei eleitoral europeia, a aprovar pelo Conselho (o que foi rejeitado). Isso dá bem a medida das importantes resistências que a ideia das listas transnacionais suscita no quadro europeu.
Acresce que a combinação entre as listas transnacionais e a figura dos “spitzenkandidaten” arrisca-se a sugerir uma pretensa e equívoca eleição direta do Presidente da Comissão, ao estilo presidencialista, mas enxertada na eleição de deputados ao Parlamento Europeu e coexistindo com as regras dos Tratados que continuam a conferir ao Conselho a competência para, tendo em conta os resultados eleitorais, propor o Presidente da Comissão a ser eleito, por sufrágio secreto, pelo Parlamento Europeu. Está bem de ver que continuando a ser determinante para a eleição do Presidente da Comissão Europeia a formação de uma maioria política no Parlamento Europeu - única forma de garantir o pleno respeito pelos resultados eleitorais - a margem de manobra para encontrar uma solução política parlamentar maioritária seria constrangida pela perceção errónea decorrente do facto de haver um candidato mais votado (ainda que sem maioria absoluta) na tal circunscrição europeia a que concorreriam as listas transnacionais. O equívoco político sobre a origem da legitimidade do Presidente da Comissão Europeia correria um sério risco de ser ainda maior do que é agora.
Não quer isto dizer, note-se, que a figura dos “spitzenkandidaten” esteja condenada ou seja desprovida de qualquer utilidade. Pelo contrário, os “spitzenkandidaten” são muito úteis para dar visibilidade e estruturação ao debate político-eleitoral europeu, desde que entendidos como “porta-vozes” das respetivas famílias políticas e, eventualmente, candidatos indicativos para a presidência da Comissão Europeia. O que não pode é escamotear-se que, nos termos do Tratado de Lisboa, a eleição do Presidente da Comissão continuará a fazer-se por voto secreto no Parlamento Europeu e alimentar-se o equívoco de uma pretensa eleição direta, à maneira presidencialista (mas sem segunda volta) e enxertada num sistema democrático de representação parlamentar.
Também a visão de uma Conferência sobre o Futuro da Europa resumida à simples discussão das políticas não está isenta de riscos. E o maior deles, creio, é que a Conferência se transforme numa espécie de “exercício plebiscitário”, em que os cidadãos seriam chamados a participar num amplo debate para simplesmente confirmarem o rumo das políticas em curso de acordo com a atual agenda da Comissão. Essa tentação, sem dúvida, existe e, diria, é mesmo quase natural numa Comissão Europeia que acabou de definir as suas apostas estratégicas para o futuro próximo - no sentido de uma transição verde, digital e justa -, aprovou recentemente os seus instrumentos financeiros para a próxima década e está já a negociar com os Estados-membros a alocação das verbas dos planos de recuperação nacionais. Todavia, é evidente que se a Conferência sobre o Futuro da Europa se saldar por uma mera validação das políticas em curso, com um ou outro apontamento mais criativo, todo o exercício irá apenas alimentar mais frustrações.
Assim, nem a ousadia de uma reforma institucional de marcado pendor federalista parece politicamente viável, nem a visão conservadora de um debate estéril para confirmação das políticas em curso se afigura suficiente.
Certo é que de nada serve um grande debate europeu que se limite a alimentar ilusões, ignorando as circunstâncias políticas necessárias para fazer executar as suas escolhas. Precisamos, isso sim, de construir, com ambição, mas também com realismo, compromissos políticos exequíveis para que o projeto europeu possa responder melhor às expetativas concretas dos cidadãos e dar passos significativos na direção certa. Em suma, é preciso encontrar uma “terceira via” para esta Conferência sobre o Futuro da Europa.
6. Uma “terceira via” para a Conferência sobre o Futuro da Europa
Como ficou dito, nenhum cenário deve ser excluído à partida, nem nenhuma conclusão deve ser pré-formatada. Todavia, não há razão alguma para colocar em oposição as reformas institucionais e a revisão das políticas: ambas podem, na medida certa, fazer parte do caminho a trilhar pela Conferência sobre o Futuro da Europa.
Naturalmente, deve reconhecer-se que, ao invés de rasgados impulsos federalistas, parece mais viável construir compromissos políticos em torno do potencial de aperfeiçoamentos político-institucionais ainda por explorar ao abrigo do atual Tratado de Lisboa.
Assim, pode ser solução o recurso mais generalizado a fórmulas de geometria variável, designadamente através da utilização do mecanismo de cooperação reforçada previsto no Tratado de Lisboa para os Estados-membros que desejem ir mais longe na dinâmica de integração - como já hoje sucede no espaço Schengen e na própria zona euro.
Do mesmo modo, a chamada “cláusula passarelle”, que permite, em certas situações, simplificar o processo decisório e afastar a regra da unanimidade, pode também ser mobilizada mais frequentemente para agilizar o processo de decisão a nível comunitário.
O reforço do papel do Parlamento Europeu - única instituição europeia eleita democraticamente pelos cidadãos -, designadamente em matéria de governação económica e de escrutínio da Comissão Europeia, do Mecanismo Europeu de Estabilidade e de outras instituições europeias pode também ser concretizado por via de meras alterações legislativas ou mesmo de acordos interinstitucionais.
Nestas condições, a dificuldade política objetiva em empreender uma reforma ambiciosa dos Tratados não pode nem deve afastar da conversa o tema das reformas institucionais para uma União Europeia mais eficiente e mais democrática.
No que diz respeito às políticas, sempre sem prejuízo de todo o debate que é necessário e sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, a dura experiência das múltiplas e terríveis crises que o Mundo e o projeto europeu tiveram de enfrentar nos últimos anos deveriam conduzir a uma especial valorização política de alguns temas que merecem ganhar outro destaque na atual escala de prioridades da União Europeia.
Destaco quatro, a título de exemplo:
Em primeiríssimo lugar, o combate às desigualdades, que se agravaram muito seriamente, quer a nível europeu quer a nível global, a ponto de adquirirem uma dimensão totalmente escandalosa que precisa de ser enfrentada com renovada determinação no plano da justiça fiscal e das políticas sociais, em particular apoiando o Estado Social, os serviços públicos e a mobilidade social, de forma a prosseguir o caminho aberto pela Cimeira Social do Porto na implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais;
Em segundo lugar, reforçar a capacidade de coordenação e as competências das instituições europeias no domínio da saúde, incluindo a Agência Europeia do Medicamento, de modo a dotar a União Europeia de uma maior capacidade de resposta coletiva a situações como a da presente pandemia;
Em terceiro lugar, dar um novo impulso à solidariedade europeia na promoção da convergência e da coesão social e territorial, mas também na gestão das migrações e na resposta aos refugiados, bem como na cooperação para o desenvolvimento sustentável;
Em quarto lugar, qualificar a democracia a nível europeu, por via do reforço do Parlamento Europeu, do apelo à democracia participativa e da valorização da cidadania europeia.
Não se trata, portanto, de ratificar o curso das políticas europeias, mas de lançar um debate que permita identificar os domínios onde se exige um novo rumo ou onde se mostra necessário um novo impulso - essa é a tarefa que devemos esperar da Conferência sobre o Futuro da Europa.
7. Um movimento de reencontro do projeto europeu com as expetativas dos cidadãos
A Conferência sobre o Futuro da Europa tem o enorme mérito de confrontar o projeto europeu com a realidade da encruzilhada em que se encontra. Na verdade, a questão é esta: para ter futuro, a União Europeia precisa de ser capaz de responder aos descontentamentos de que se alimenta o populismo eurocético e isso implica conseguir melhores resultados para a vida concreta das pessoas.
Com a estratégia europeia de vacinação em resposta à pandemia e com os instrumentos financeiros mobilizados de forma solidária para recuperar a economia europeia devastada pela crise, a Conferência sobre o Futuro da Europa faz parte de um grande movimento de reencontro do projeto europeu com as expetativas dos cidadãos. É uma oportunidade a não perder.
A Conferência sobre o Futuro da Europa está finalmente em marcha e é justo reconhecer que isso constitui, só por si, um êxito assinalável da Presidência Portuguesa do Conselho Europeu.
Na verdade, quando a Presidência Portuguesa começou, em janeiro deste ano, a organização desta importante Conferência - que pretende mobilizar os cidadãos para um grande debate sobre o futuro do projeto europeu - estava ainda mergulhada num embaraçoso impasse que se arrastava há mais de um ano no Conselho, com os líderes dos 27 a serem incapazes de se entender e chegar a acordo com o Parlamento Europeu sobre a liderança política da iniciativa. A própria Presidência Alemã, apesar de repetidas tentativas, não conseguiu construir uma solução aceitável para o problema, pelo que foi ainda uma situação de total impasse aquela que Portugal recebeu de herança.
Felizmente, aquilo que a poderosa Presidência Alemã não conseguiu em seis meses, conseguiu a Presidência Portuguesa em pouco mais de seis semanas: um acordo interinstitucional entre as três instituições europeias - Conselho, Parlamento Europeu e Comissão Europeia - para a organização e copresidência da Conferência, em pé de igualdade. Isso permitiu que o Primeiro-Ministro António Costa fosse a Bruxelas, no dia 10 de março, assinar uma Declaração Conjunta com a Presidente da Comissão, Ursula Von Der Leyen, e o Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, firmando o compromisso político para a organização da Conferência e desfazendo quaisquer dúvidas sobre a realização da iniciativa. Assim, com paciência e habilidade, Portugal conseguiu superar este longo impasse político e, graças a isso, a 9 de maio, dia da Europa, teve lugar, em Estrasburgo, a tão ansiada Sessão de Abertura.
Entretanto, todo o processo de organização da Conferência foi posto de pé: foi instituído o Comité Executivo organizador; foi aprovado o regulamento da Conferência, definida a sua agenda e elaborado o respetivo calendário; foi criada e disponibilizada, desde 19 de abril, a plataforma online para a participação dos cidadãos (contando já com cerca de 20 mil participações e mais de mil eventos de debate anunciados) e começou a preparação dos “painéis de cidadãos” (que se iniciam em setembro), como fóruns descentralizados de debate das recomendações a dirigir ao plenário da Conferência. A culminar este intenso trabalho organizativo, teve lugar em Estrasburgo, no dia 19 de junho, a primeira sessão plenária da Conferência sobre o Futuro da Europa - em que tive a honra de participar como membro da delegação do Grupo dos Socialistas e Democratas (S&D) do Parlamento Europeu.
Os factos não mentem: em menos de seis meses, a Presidência Portuguesa não só se afirmou como “força de desbloqueio” da Conferência sobre o Futuro da Europa, como foi capaz de dinamizar a organização da Conferência e de a deixar em pleno funcionamento.
2. Uma Conferência para quê?
Motivos não faltam para convidar os cidadãos e as instituições europeias para um debate sério e aprofundado sobre o futuro do projeto europeu.
Confrontada com duas graves crises quase consecutivas - a crise financeira de 2007-2011 e a crise pandémica de 2020-2021- que causaram um sério retrocesso económico-social e agravaram muito profundamente o desemprego, a pobreza e as desigualdades; abalada pelo Brexit; sistematicamente dividida na gestão das migrações e na resposta aos refugiados; atingida nos seus valores fundadores pela deriva iliberal contra o Estado de Direito por parte de alguns dos seus membros do Leste e, sobretudo, alvo de um ataque frontal pelo preocupante crescimento da extrema-direita e do populismo eurocético, nacionalista e xenófobo, a União Europeia precisa urgentemente de construir os compromissos políticos necessários para corresponder mais e melhor às expetativas dos seus cidadãos.
Para isso, faz todo o sentido começar por dar a voz aos próprios cidadãos, aos parceiros sociais e às estruturas representativas da sociedade civil no quadro de um grande processo de auscultação e debate - e é essa, justamente, a primeira ambição da Conferência sobre o Futuro da Europa.
Assim, num primeiro momento, as instituições políticas europeias colocar-se-ão em verdadeiro “modo de escuta” para que sejam os cidadãos, através de contribuições online e da discussão temática em “painéis de cidadãos”, a identificar preocupações e expetativas, opções e propostas. Desse processo resultarão, ao que se espera, um conjunto de recomendações que serão trazidas a debate no plenário da Conferência e nos respetivos grupos de trabalho, até chegar à aprovação de conclusões políticas nos termos acordados nas regras de procedimento do evento.
3. Um exercício de democracia representativa e participativa
O que se pretende, fique claro - para que não haja equívocos - não é, de modo algum, um exercício de democracia direta, assente numa qualquer desconfiança sobre a suficiência da legitimidade própria da democracia representativa em que se fundam as instituições políticas europeias. Pelo contrário, tem-se plena consciência de que as decisões políticas que hão de ser tomadas em resultado desta Conferência sobre o Futuro da Europa só podem ter plena legitimidade democrática através da validação pelas instituições democráticas representativas, já que são as únicas democraticamente mandatadas pelos cidadãos.
Não é menos certo, no entanto, que a democracia não se esgota no exercício periódico do direito de voto e, nessa medida, não há dúvida de que uma democracia representativa mais viva deve ser, necessariamente, uma democracia mais participada, desenvolvendo-se como verdadeira democracia participativa. É, afinal, o que se pretende com a Conferência sobre o Futuro da Europa: que a democracia representativa europeia possa beneficiar do contributo da participação dos cidadãos.
Ninguém ignora, naturalmente, que as opiniões recolhidas na plataforma online, por muito significativas que sejam, não permitirão aferir, com rigor democrático, da formação de maiorias políticas neste ou naquele sentido, tal como é sabido que os 800 cidadãos selecionados, segundo critérios objetivos de amostragem social, para participar nos “painéis de cidadãos” não serão detentores de nenhum mandato democrático que lhes confira especial legitimidade para a representação dos seus concidadãos. Todavia, nada disso retira utilidade, interesse e importância a este amplo processo participativo, que permitirá dinamizar a democracia europeia e dar a conhecer melhor as reais expetativas dos cidadãos quanto ao futuro do projeto europeu.
Que os cidadãos têm coisas a dizer sobre o futuro da Europa, não há hoje dúvida alguma. Segundo os dados do Eurobarómetro do passado mês de março - um mega-inquérito de opinião à escala europeia - 92% dos inquiridos querem que as suas opiniões sejam mais tidas em conta nas decisões relativas ao futuro da Europa e 76% concordam que a realização da Conferência sobre o Futuro da Europa representa um progresso significativo nesse sentido.
Mais recentemente, o Eurobarómetro da Primavera revelou que apenas 48% dos europeus têm uma imagem muito ou razoavelmente positiva da União Europeia, sendo que 23% dizem ser a favor da forma como a União Europeia tem sido concretizada até agora, enquanto 47% apoiam o projeto europeu, mas defendem que sejam trilhados outros caminhos. Apesar de um largo espetro de neutralidade ou indiferença (35%) e de apenas se terem registado 17% de respostas negativas, deve reconhecer-se um grau de insatisfação não negligenciável, que convive com um potencial importante de disponibilidade para contribuir para um melhor futuro do projeto europeu.
Digno de nota é o facto deste panorama se apresentar bem distinto no caso de Portugal, onde 84% dos cidadãos (38 pontos percentuais acima da média europeia!) declaram ter uma imagem muito ou razoavelmente positiva da União Europeia, sendo que são 14% os que têm uma atitude neutral e apenas 2% confessam ter uma imagem negativa. Por outro lado, 33% dos portugueses manifestam-se a favor da forma como a União Europeia tem sido concretizada até agora e 58% declaram apoio ao projeto europeu, mas defendem alterações na forma como o projeto europeu tem sido conduzido. Enquanto isso, apenas 9% se afirmam eurocéticos.
Em suma, se é inequívoco um fortíssimo apoio dos portugueses ao projeto europeu, a um nível que chega mesmo a ser o mais elevado de toda a União Europeia, não deixa de haver também em Portugal o desejo de que sejam introduzidas mudanças. É para esse debate que os cidadãos são agora convocados.
4. Um debate aberto e livre, sem resultados pré-definidos
O exercício de dar voz aos cidadãos para discutir o futuro da Europa só será sério se permitir um debate realmente livre, sem condicionamentos nem resultados pré-definidos. Evidentemente, é legítimo que cada um - cidadão, parceiro social ou família política - possa enunciar as suas expetativas e propostas para a Conferência e para o futuro da Europa, mas a precipitada definição de “critérios de sucesso” para avaliar aqueles que serão os resultados do debate - seja a reforma dos Tratados, a introdução das listas transnacionais ou qualquer outra concreta alteração institucional ou de políticas - seria desrespeitar à partida o que se pretende que seja uma genuína auscultação das opiniões e propostas dos cidadãos e da sociedade civil.
Naturalmente, para que possa ser produtivo este debate não pode ser anárquico e não dispensa, por isso, a definição de uma agenda e uma certa organização temática, ainda que formulada em termos muito amplos.
Assim, na plataforma online disponível para a participação dos cidadãos estão previstos 10 temas: i) Alterações climáticas e ambiente; ii) Saúde; iii) Uma economia mais forte, justiça social e emprego; iv) A União Europeia no Mundo; v) Valores e direitos, Estado de Direito e segurança; vi) Transformação digital; vii) Democracia europeia; viii) Migrações; ix) Educação, cultura, juventude e desporto; x) Outras ideias.
Subsequentemente, as ideias e propostas recolhidas serão discutidas em quatro “painéis de cidadãos”, assim distribuídos: i) Valores e direitos, Estado de Direito e segurança; ii) Alterações climáticas, ambiente e saúde; iii) Uma economia mais forte, justiça social, emprego, transformação digital, educação, cultura, juventude e desporto; iv) A União Europeia no Mundo e migrações.
Finalmente, o próprio plenário da Conferência funcionará também por via de nove grupos de trabalho que, por uma questão de coerência, serão organizados tematicamente em conformidade com os já referidos primeiros nove núcleos temáticos previstos na plataforma online.
Como se pode ver, esta estrutura, se visa de alguma forma ordenar o debate, não deixa de permitir a discussão, com toda a liberdade e sem qualquer condicionamento, de qualquer assunto relevante. Nessa medida, pode dizer-se que a Conferência sobre o Futuro da Europa será, de facto, o que os cidadãos quiserem fazer dela.
Não será de estranhar que a resposta da União Europeia à crise que hoje atravessamos marque a identificação de preocupações, expetativas e propostas. A julgar pelo Eurobarómetro da Primavera, os portugueses - que, aliás, também fazem uma avaliação mais positiva (53%) sobre a resposta europeia à crise do que a média europeia (48%) - defendem três grandes prioridades nesta matéria: primeiro, assegurar o acesso rápido a vacinas seguras e eficazes para todos os cidadãos da União Europeia; segundo, fazer mais investimento na economia para uma recuperação sustentável, justa e equitativa em todos os Estados-membros da União Europeia e, terceiro, estabelecer uma estratégia europeia para enfrentar crises semelhantes no futuro. Neste último aspeto, uma percentagem impressionante de portugueses - 96% - manifestam-se claramente a favor de um reforço das competências da União Europeia na área da saúde.
Veremos se estas preocupações dos portugueses têm eco nas conclusões finais da Conferência.
5. Duas visões sobre a Conferência sobre o Futuro da Europa
Duas visões aparentemente opostas sobre o que deve ser a Conferência sobre o Futuro da Europa têm estado em confronto no debate europeu.
De um lado, estão aqueles que vêm nesta Conferência a oportunidade para impulsionar a revisão dos Tratados e operar uma série de reformas institucionais de pendor federalista ou, ao menos, no sentido de uma mais profunda integração política. Não faltam sugestões: eliminação da regra da unanimidade em certas decisões do Conselho, designadamente em matéria de política externa e, porventura, de política fiscal; criação, em sede de reforma da lei eleitoral europeia, das chamadas “listas transnacionais” (em que às circunscrições eleitorais nacionais se somaria um círculo eleitoral europeu); reforço da figura dos denominados “spitzenkandidaten” (candidatos das várias famílias políticas europeias a Presidente da Comissão), que passariam a ser necessariamente os cabeças-de-lista das referidas listas transnacionais; ajustamento nas regras da governação económica e na arquitetura da União Económica e Monetária (abrindo caminho para os Eurobonds ou outras formas de mutualização da dívida, a par da criação de uma verdadeira capacidade orçamental e de uma função de estabilização); revisão do mandato do Banco Central Europeu; reforço dos mecanismos de defesa dos valores europeus e de garantia do Estado de Direito; atribuição de poder de iniciativa legislativa ao Parlamento Europeu e alargamento do alcance das comissões parlamentares de inquérito; criação de uma autêntica União Para a Saúde.
Do outro lado, temos aqueles que rejeitam qualquer impulso federalista ou movimento significativo no sentido de mais integração, mas também aqueles que, simplesmente, descreem da viabilidade política de reunir a unanimidade necessária para uma reforma dos Tratados ou que consideram os eternos debates sobre reformas institucionais como um autêntico vício instalado na chamada “bolha de Bruxelas”, que diz pouco ou nada ao comum dos cidadãos. A alternativa, dizem, seria fazer da Conferência sobre o Futuro da Europa um debate não sobre as instituições, mas essencialmente sobre as políticas, como sejam a resposta à pandemia, a recuperação económica, o pilar europeu dos direitos sociais, o “Green Deal”, o combate às alterações climáticas, a transição digital e o desenvolvimento sustentável.
Deve reconhecer-se que nenhuma destas visões, assim sumariamente enunciadas, se apresenta particularmente promissora.
Embora nenhum cenário deva ser excluído à partida, tem de reconhecer-se que são tão vincadas as diferentes sensibilidades sobre a dinâmica da integração europeia que se afigura realmente baixa a probabilidade de construir a unanimidade indispensável para rever substancialmente os Tratados. Não se trata, portanto, de negar a pertinência que poderiam ter diversas benfeitorias institucionais, nem de retirar legitimidade a quem as defenda, mas de reconhecer a evidência política de múltiplas minorias de bloqueio. De facto, não é difícil adivinhar que se uns rejeitariam soluções de tipo federal que diminuíssem as atuais reservas de soberania dos Estados, outros opor-se-iam, em nome do “risco moral”, a qualquer modificação substantiva, num sentido mais solidário, da governação económica e da arquitetura do Euro, enquanto outros ainda se atravessariam, preventivamente, no caminho de qualquer reforço dos mecanismos sancionatórios por violação do Estado de Direito.
É certo, estão também sobre a mesa e na agenda da Conferência propostas de reforma da lei eleitoral europeia que, em princípio, não careceriam necessariamente de revisão dos Tratados, como é o caso da criação das chamadas listas transnacionais, que têm sido apresentadas como forma de reforçar a dimensão verdadeiramente europeia das eleições para o Parlamento Europeu e de proporcionar um suplemento de legitimidade democrática aos candidatos a Presidente da Comissão Europeia, que seriam forçosamente os cabeças-de-lista dessas listas transnacionais.
Sucede que também essa reforma da lei eleitoral europeia - além dos múltiplos problemas que levanta, que não cumpre analisar aqui - carece da necessária aprovação unânime no Conselho, o que não se afigura de todo fácil. Na verdade, não só os países pequenos e médios tendem a desconfiar da posição que seria reservada aos seus candidatos pelos partidos europeus nessas listas para a circunscrição conjunta, mas também muitos recusam a ideia de forçar os cidadãos a votar em listas de candidatos estrangeiros que não conhecem e, em muitos casos, não podem sequer razoavelmente conhecer pela simples razão de que não falam a sua língua.
Por essa razão, aliás, quando se tratou, na legislatura anterior, de estabelecer a recomposição do Parlamento Europeu após o Brexit - em resolução de que fui relator - o próprio Parlamento Europeu rejeitou a minha proposta de, mesmo sem antecipar pronunciamentos sobre a proposta das listas transnacionais, destinar os 46 lugares que ficariam vagos não só para futuros alargamentos (o que foi aprovado), mas também para uma eventual futura criação de listas transnacionais em sede de revisão da lei eleitoral europeia, a aprovar pelo Conselho (o que foi rejeitado). Isso dá bem a medida das importantes resistências que a ideia das listas transnacionais suscita no quadro europeu.
Acresce que a combinação entre as listas transnacionais e a figura dos “spitzenkandidaten” arrisca-se a sugerir uma pretensa e equívoca eleição direta do Presidente da Comissão, ao estilo presidencialista, mas enxertada na eleição de deputados ao Parlamento Europeu e coexistindo com as regras dos Tratados que continuam a conferir ao Conselho a competência para, tendo em conta os resultados eleitorais, propor o Presidente da Comissão a ser eleito, por sufrágio secreto, pelo Parlamento Europeu. Está bem de ver que continuando a ser determinante para a eleição do Presidente da Comissão Europeia a formação de uma maioria política no Parlamento Europeu - única forma de garantir o pleno respeito pelos resultados eleitorais - a margem de manobra para encontrar uma solução política parlamentar maioritária seria constrangida pela perceção errónea decorrente do facto de haver um candidato mais votado (ainda que sem maioria absoluta) na tal circunscrição europeia a que concorreriam as listas transnacionais. O equívoco político sobre a origem da legitimidade do Presidente da Comissão Europeia correria um sério risco de ser ainda maior do que é agora.
Não quer isto dizer, note-se, que a figura dos “spitzenkandidaten” esteja condenada ou seja desprovida de qualquer utilidade. Pelo contrário, os “spitzenkandidaten” são muito úteis para dar visibilidade e estruturação ao debate político-eleitoral europeu, desde que entendidos como “porta-vozes” das respetivas famílias políticas e, eventualmente, candidatos indicativos para a presidência da Comissão Europeia. O que não pode é escamotear-se que, nos termos do Tratado de Lisboa, a eleição do Presidente da Comissão continuará a fazer-se por voto secreto no Parlamento Europeu e alimentar-se o equívoco de uma pretensa eleição direta, à maneira presidencialista (mas sem segunda volta) e enxertada num sistema democrático de representação parlamentar.
Também a visão de uma Conferência sobre o Futuro da Europa resumida à simples discussão das políticas não está isenta de riscos. E o maior deles, creio, é que a Conferência se transforme numa espécie de “exercício plebiscitário”, em que os cidadãos seriam chamados a participar num amplo debate para simplesmente confirmarem o rumo das políticas em curso de acordo com a atual agenda da Comissão. Essa tentação, sem dúvida, existe e, diria, é mesmo quase natural numa Comissão Europeia que acabou de definir as suas apostas estratégicas para o futuro próximo - no sentido de uma transição verde, digital e justa -, aprovou recentemente os seus instrumentos financeiros para a próxima década e está já a negociar com os Estados-membros a alocação das verbas dos planos de recuperação nacionais. Todavia, é evidente que se a Conferência sobre o Futuro da Europa se saldar por uma mera validação das políticas em curso, com um ou outro apontamento mais criativo, todo o exercício irá apenas alimentar mais frustrações.
Assim, nem a ousadia de uma reforma institucional de marcado pendor federalista parece politicamente viável, nem a visão conservadora de um debate estéril para confirmação das políticas em curso se afigura suficiente.
Certo é que de nada serve um grande debate europeu que se limite a alimentar ilusões, ignorando as circunstâncias políticas necessárias para fazer executar as suas escolhas. Precisamos, isso sim, de construir, com ambição, mas também com realismo, compromissos políticos exequíveis para que o projeto europeu possa responder melhor às expetativas concretas dos cidadãos e dar passos significativos na direção certa. Em suma, é preciso encontrar uma “terceira via” para esta Conferência sobre o Futuro da Europa.
6. Uma “terceira via” para a Conferência sobre o Futuro da Europa
Como ficou dito, nenhum cenário deve ser excluído à partida, nem nenhuma conclusão deve ser pré-formatada. Todavia, não há razão alguma para colocar em oposição as reformas institucionais e a revisão das políticas: ambas podem, na medida certa, fazer parte do caminho a trilhar pela Conferência sobre o Futuro da Europa.
Naturalmente, deve reconhecer-se que, ao invés de rasgados impulsos federalistas, parece mais viável construir compromissos políticos em torno do potencial de aperfeiçoamentos político-institucionais ainda por explorar ao abrigo do atual Tratado de Lisboa.
Assim, pode ser solução o recurso mais generalizado a fórmulas de geometria variável, designadamente através da utilização do mecanismo de cooperação reforçada previsto no Tratado de Lisboa para os Estados-membros que desejem ir mais longe na dinâmica de integração - como já hoje sucede no espaço Schengen e na própria zona euro.
Do mesmo modo, a chamada “cláusula passarelle”, que permite, em certas situações, simplificar o processo decisório e afastar a regra da unanimidade, pode também ser mobilizada mais frequentemente para agilizar o processo de decisão a nível comunitário.
O reforço do papel do Parlamento Europeu - única instituição europeia eleita democraticamente pelos cidadãos -, designadamente em matéria de governação económica e de escrutínio da Comissão Europeia, do Mecanismo Europeu de Estabilidade e de outras instituições europeias pode também ser concretizado por via de meras alterações legislativas ou mesmo de acordos interinstitucionais.
Nestas condições, a dificuldade política objetiva em empreender uma reforma ambiciosa dos Tratados não pode nem deve afastar da conversa o tema das reformas institucionais para uma União Europeia mais eficiente e mais democrática.
No que diz respeito às políticas, sempre sem prejuízo de todo o debate que é necessário e sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, a dura experiência das múltiplas e terríveis crises que o Mundo e o projeto europeu tiveram de enfrentar nos últimos anos deveriam conduzir a uma especial valorização política de alguns temas que merecem ganhar outro destaque na atual escala de prioridades da União Europeia.
Destaco quatro, a título de exemplo:
Em primeiríssimo lugar, o combate às desigualdades, que se agravaram muito seriamente, quer a nível europeu quer a nível global, a ponto de adquirirem uma dimensão totalmente escandalosa que precisa de ser enfrentada com renovada determinação no plano da justiça fiscal e das políticas sociais, em particular apoiando o Estado Social, os serviços públicos e a mobilidade social, de forma a prosseguir o caminho aberto pela Cimeira Social do Porto na implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais;
Em segundo lugar, reforçar a capacidade de coordenação e as competências das instituições europeias no domínio da saúde, incluindo a Agência Europeia do Medicamento, de modo a dotar a União Europeia de uma maior capacidade de resposta coletiva a situações como a da presente pandemia;
Em terceiro lugar, dar um novo impulso à solidariedade europeia na promoção da convergência e da coesão social e territorial, mas também na gestão das migrações e na resposta aos refugiados, bem como na cooperação para o desenvolvimento sustentável;
Em quarto lugar, qualificar a democracia a nível europeu, por via do reforço do Parlamento Europeu, do apelo à democracia participativa e da valorização da cidadania europeia.
Não se trata, portanto, de ratificar o curso das políticas europeias, mas de lançar um debate que permita identificar os domínios onde se exige um novo rumo ou onde se mostra necessário um novo impulso - essa é a tarefa que devemos esperar da Conferência sobre o Futuro da Europa.
7. Um movimento de reencontro do projeto europeu com as expetativas dos cidadãos
A Conferência sobre o Futuro da Europa tem o enorme mérito de confrontar o projeto europeu com a realidade da encruzilhada em que se encontra. Na verdade, a questão é esta: para ter futuro, a União Europeia precisa de ser capaz de responder aos descontentamentos de que se alimenta o populismo eurocético e isso implica conseguir melhores resultados para a vida concreta das pessoas.
Com a estratégia europeia de vacinação em resposta à pandemia e com os instrumentos financeiros mobilizados de forma solidária para recuperar a economia europeia devastada pela crise, a Conferência sobre o Futuro da Europa faz parte de um grande movimento de reencontro do projeto europeu com as expetativas dos cidadãos. É uma oportunidade a não perder.
no. 02 // julho 2021
Artigo
FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
fundacaorespublica.pt
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