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CONSTANÇA URBANO DE SOUSA é licenciada em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e doutorada em Direito Europeu, pela Faculdade de Direito da Universidade do Sarre, Alemanha. Desde 1998 é professora de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa, onde foi diretora do Departamento de Direito (2000-2006 e 2012 a 2015). Foi Professora Associada Convidada do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (1998-2006; 2012-2015) e da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (2004-2006; 2018-2020). De outubro de 2017 a março de 2022 foi deputada à Assembleia da República. Desde 1999 é membro da Rede Odysseus (Juristas Especialistas em Direito de Imigração e Asilo) coordenada pela Universidade Livre de Bruxelas, onde leciona no curso de verão de Direito Europeu de Asilo e Imigração (desde 2000). De 2006 a 2012 foi conselheira e coordenadora da Unidade Justiça e Assuntos Internos (JAI) da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER). De setembro de 2012 a novembro de 2015 foi consultora jurídica no Gabinete do Presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian. Exerceu o cargo de ministra da Administração Interna no XXI Governo Constitucional, entre 26 de novembro de 2015 e 18 de outubro de 2017. De outubro de 2017 a março de 2022 foi deputada à Assembleia da República, tendo assumido, em 2019, a função de Vice-Presidente da Direção do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. ________________________________ |
A REFORMA DO REGIME JURÍDICO |
RESUMO As ordens profissionais são associações públicas que têm carácter excecional. O seu objetivo é assegurar a regulação deontológica de uma determinada profissão quando o Estado não o pode fazer. Não é a satisfação de interesses corporativos dos profissionais, restringindo de forma desproporcionada o acesso às profissões. A multiplicação de ordens profissionais e a desvirtuação da sua missão de interesse público tornaram urgente a reforma do seu regime jurídico, proposta em outubro pelo Partido Socialista. É uma reforma há muito tempo recomendada pela UE e pela OCDE e transformada num compromisso de Portugal no contexto do Plano de Recuperação e Resiliência. Mas é, sobretudo, uma reforma necessária para libertar o País de um corporativismo atávico e assegurar a defesa do interesse público num Estado de direito democrático. ABSTRACT Professional associations are public associations which are exceptional in nature. Their purpose is to ensure the deontological regulation of a given profession when the State cannot do so. It is not to satisfy the corporate interests of professionals by disproportionately restricting access to professions. The multiplication of professional associations and the distortion of their public interest mission have made the reform of their legal regime, proposed in October by the Socialist Party, urgent. It is a reform that has long been recommended by the EU and the OECD and has become a commitment of Portugal in the context of the Recovery and Resilience Plan. But it is, above all, a necessary reform to free the country from an atavistic corporativism and to ensure the defence of the public interest in a democracy governed by the rule of law. |
1. Caracterização das ordens profissionais como associações públicas de carácter excecional num Estado de Direito democrático
As ordens profissionais são associações públicas que integram a Administração autónoma do Estado. O artigo 2.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, define-as como “entidades públicas de estrutura associativa representativas de profissões que devam ser sujeitas, cumulativamente, ao controlo do respetivo acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e de princípios e regras deontológicos específicos e a um regime disciplinar autónomo, por imperativo de tutela do interesse público prosseguido.” Têm, assim, a natureza jurídica de pessoas coletivas de direito público, sujeitas ao direito público no exercício das suas atribuições (artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2013). A sua principal missão não é a defesa de interesses dos profissionais (essa é função de sindicatos ou de associações de direito privado livremente criadas), mas regular o acesso e exercício de uma determinada profissão, com vista à defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços (artigo 5.º da Lei n.º 2/2013).
As primeiras ordens foram criadas para a regulação deontológica do exercício de profissões liberais. Eram concebidas pela ordem constitucional do Estado Novo como organismos corporativos ou entidades da Administração corporativa, sendo tributárias do sistema corporativo do Estado Novo(1).
Até ao 25 de abril de 1974, havia quatro ordens profissionais (advogados, engenheiros, médicos e farmacêuticos). Com a instauração do regime democrático de abril (e o desmantelamento do corporativismo do Estado Novo), a legitimidade constitucional das ordens chegou a ser questionada, pois a Constituição da República Portuguesa de 1976 era omissa em relação às associações públicas. Mas a primeira revisão constitucional (1982) deu cobertura constitucional à criação excecional de associações públicas. Assim, nos termos do artigo 267.º, n.º 4 da CRP, “as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”.
Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, as associações públicas (categoria a que as ordens profissionais pertencem) são “formas de organização através das quais o Estado confere aos interessados, propositadamente associados para o efeito, certos poderes públicos, submetendo para isso essas associações a um regime de direito público (...) que se traduz, por via da regra, em restrições mais ou menos intensas à liberdade de associação, constitucionalmente garantida (art. 46.º)(2). Seguindo de perto estes autores, a criação de ordens profissionais (e demais associações públicas) está sujeita a quatro princípios constitucionais: (1) Excecionalidade (apenas podem ser criadas se for necessário à satisfação de uma determinada finalidade pública); (2) Especificidade (só podem ser criadas para fins específicos, determinados por uma necessidade pública); (3) Proibição do exercício de atividade sindical (as ordens não podem defender os seus membros na sua qualidade de trabalhadores ou prestadores de serviços); (4) Democracia interna (os seus órgãos devem ser eleitos diretamente pelos membros ou por uma assembleia de representantes)(3).
O carácter excecional da criação de ordens profissionais também resulta da lei que regula a sua criação, organização e funcionamento, tanto a de 2008 (já revogada)(4), como a vigente. Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, a “constituição de associações públicas profissionais é excecional, podendo apenas ter lugar quando:
As ordens profissionais são associações públicas que integram a Administração autónoma do Estado. O artigo 2.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, define-as como “entidades públicas de estrutura associativa representativas de profissões que devam ser sujeitas, cumulativamente, ao controlo do respetivo acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e de princípios e regras deontológicos específicos e a um regime disciplinar autónomo, por imperativo de tutela do interesse público prosseguido.” Têm, assim, a natureza jurídica de pessoas coletivas de direito público, sujeitas ao direito público no exercício das suas atribuições (artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2013). A sua principal missão não é a defesa de interesses dos profissionais (essa é função de sindicatos ou de associações de direito privado livremente criadas), mas regular o acesso e exercício de uma determinada profissão, com vista à defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços (artigo 5.º da Lei n.º 2/2013).
As primeiras ordens foram criadas para a regulação deontológica do exercício de profissões liberais. Eram concebidas pela ordem constitucional do Estado Novo como organismos corporativos ou entidades da Administração corporativa, sendo tributárias do sistema corporativo do Estado Novo(1).
Até ao 25 de abril de 1974, havia quatro ordens profissionais (advogados, engenheiros, médicos e farmacêuticos). Com a instauração do regime democrático de abril (e o desmantelamento do corporativismo do Estado Novo), a legitimidade constitucional das ordens chegou a ser questionada, pois a Constituição da República Portuguesa de 1976 era omissa em relação às associações públicas. Mas a primeira revisão constitucional (1982) deu cobertura constitucional à criação excecional de associações públicas. Assim, nos termos do artigo 267.º, n.º 4 da CRP, “as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”.
Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, as associações públicas (categoria a que as ordens profissionais pertencem) são “formas de organização através das quais o Estado confere aos interessados, propositadamente associados para o efeito, certos poderes públicos, submetendo para isso essas associações a um regime de direito público (...) que se traduz, por via da regra, em restrições mais ou menos intensas à liberdade de associação, constitucionalmente garantida (art. 46.º)(2). Seguindo de perto estes autores, a criação de ordens profissionais (e demais associações públicas) está sujeita a quatro princípios constitucionais: (1) Excecionalidade (apenas podem ser criadas se for necessário à satisfação de uma determinada finalidade pública); (2) Especificidade (só podem ser criadas para fins específicos, determinados por uma necessidade pública); (3) Proibição do exercício de atividade sindical (as ordens não podem defender os seus membros na sua qualidade de trabalhadores ou prestadores de serviços); (4) Democracia interna (os seus órgãos devem ser eleitos diretamente pelos membros ou por uma assembleia de representantes)(3).
O carácter excecional da criação de ordens profissionais também resulta da lei que regula a sua criação, organização e funcionamento, tanto a de 2008 (já revogada)(4), como a vigente. Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, a “constituição de associações públicas profissionais é excecional, podendo apenas ter lugar quando:
a)Visar a tutela de um interesse público de especial relevo que o Estado não possa assegurar diretamente;
b) For adequada, necessária e proporcional para tutelar os bens jurídicos a proteger; e c) Respeitar apenas a profissões sujeitas aos requisitos previstos no artigo anterior.” |
Ou seja, só devem ser criadas ordens profissionais, enquanto estruturas representativas de profissões (e não de profissionais), quando estes pressupostos estão cumulativamente preenchidos e apenas em relação a profissões que, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 2/2013, devam estar sujeitas “ao controlo do respetivo acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e de princípios e regras deontológicos específicos e a um regime disciplinar autónomo, por imperativo de tutela do interesse público prosseguido.”
Em mente está, sobretudo, o exercício de profissão liberal que requeira, não apenas uma habilitação académica, mas a observância de princípios deontológicos e de elevados padrões de complexidade técnica, que o Estado enquanto tal não tem capacidade de regular. Por isso delegando nas associações públicas profissionais a regulação do acesso à profissão, bem como a supervisão do seu bom exercício, através do poder disciplinar.
No entanto, o panorama do exercício das profissões liberais alterou-se, já que muitos profissionais inscritos em ordens exercem a profissão no âmbito de uma relação laboral. Até a advocacia, apontada como exemplo típico de uma profissão liberal, não escapa a um fenómeno que muitos designam de “proletarização”, caracterizado pela integração de advogados em sociedades profissionais, que exercem a profissão sob a orientação de um sócio, com subordinação jurídica, própria duma relação laboral (independentemente do artifício jurídico utilizado para regular a relação entre o advogado e a sociedade de advogados como contrato de prestação de serviços). A este propósito, é elucidativo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de outubro de 2003, que, num litígio que opôs um advogado à sociedade de advogados onde trabalhava, considerou que pese embora a relação possa ter características híbridas (contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços) esta pode ser qualificada como integrando um contrato de trabalho, sempre que a atividade profissional depende de orientação e supervisão, sendo, portanto, juridicamente subordinada. Neste contexto, o Tribunal da Relação salientou que “... o advogado é, em geral, a profissão apontada como o modelo do profissional liberal, mas a realidade vem revelando cada vez mais um fenómeno novo, que alguns não hesitam em denominar como a “proletarização da advocacia” que deve merecer a atenção da sociedade(5). Esta tendência não é um exclusivo da advocacia, antes se verifica em outras profissões como a dos médicos (que trabalham no Estado-SNS e/ou nos grupos económicos da área da saúde) ou a dos farmacêuticos (em especial, depois da introdução da liberalização da propriedade das farmácias). Também existem profissões que não são liberais por natureza (assistentes sociais, biólogos, economistas, entre outras), mas que estão autorreguladas no âmbito das respetivas ordens profissionais.
Daí que seja pertinente a questão de saber para que servem, afinal, as ordens profissionais. Para, por delegação do Estado, exercer a missão pública de regular uma profissão e supervisionar o seu exercício, em nome do interesse público. Não é, seguramente, para proteger interesses corporativos dos profissionais nelas inscritos (restringindo, por diversos meios, o acesso à profissão ou não exercendo com diligência o seu poder sancionatório em relação aos profissionais que cometem infrações deontológicas e profissionais). Infelizmente, algumas ordens preocupam-se mais com a defesa de interesses dos seus profissionais ou com a prestação de serviços aos membros, do que com a missão de interesse público que o Estado lhes confiou e que é a sua verdadeira razão de existir(6). Como refere Vital Moreira, o Estado entregou às ordens “a tarefa de regulação e de supervisão profissional, designadamente no que respeita ao cumprimento dos deveres deontológicos e das boas práticas profissionais, bem como a punição das eventuais infrações (autodisciplina profissional). Ao contrário das associações de direito privado, que são de criação e de inscrição voluntária e que não dispõem de poderes de autoridade pública (salvo casos excecionais de delegação), as ordens profissionais - como se denominam oficialmente entre nós desde o início, copiando a designação italiana - são criadas por lei e são de inscrição obrigatória, como condição de exercício da profissão, sendo caracterizadas pelos poderes públicos que lhe são conferidos legalmente, designadamente na área da disciplina profissional. Como é inerente à sua natureza de organismos de base associativa, as ordens acumulam o exercício de poderes públicos, em nome e representação do Estado, com a representação e defesa dos interesses coletivos da respetiva profissão, o que lhe confere uma natureza dualista, que pode levar a verdadeiras contradições, sempre que a defesa dos interesses profissionais as conduzirem a opor-se às políticas públicas para o respetivo setor. Mesmo fora de qualquer conflito, há sempre o risco de as ordens dedicarem os seus meios e recursos financeiros mais à promoção dos interesses profissionais do que ao desempenho das tarefas públicas que as justificam”(7).
2. Um Estado capturado por interesses profissionais corporativos: a criação “desmesurada” de ordens profissionais a partir dos anos 90
Apesar da criação de ordens profissionais ter, no quadro constitucional e legal vigente, carácter excecional, a partir dos anos 90 existiu uma proliferação de ordens profissionais, seja como “upgrading” de câmaras profissionais (associações públicas) ou para satisfazer reivindicações de associações privadas de profissionais.
Não é de admirar que estas associações exerçam enorme pressão sobre o legislador para que a profissão possa ser objeto de autorregulação no âmbito de uma ordem profissional. É que a conversão de associações de profissionais de direito privado em ordens permite-lhes não apenas velar pelo cumprimento de deveres deontológicos no exercício da profissão (sendo, portanto, dotadas pelo Estado de poder disciplinar), mas também regular o acesso ao mercado de trabalho dos profissionais, que passam a ter de cumprir requisitos restritivos de inscrição na ordem, sem a qual não podem exercer a profissão para a qual estão academicamente habilitados. Esta tendência das ordens de restringir excessivamente o acesso à profissão autorregulada, criando as mais diversas barreiras (frequência de cursos, taxas elevadas, estágios excessivamente longos, etc.), que Vital Moreira designa de “malthusianismo profissional”(8), é acompanhada da tentação de reservar para a profissão um número crescente de atos exclusivos, constituindo, assim, verdadeiras reservas de mercado de trabalho.
É o que acontece, por exemplo, com a recém-criada Ordem dos Assistentes Sociais, que reserva aos licenciados em serviço social (uma licenciatura de banda muito larga, em que se aprende “um pouco de tudo”) um emprego no Estado ou nas IPSS nas mais diversas áreas de intervenção social, desde o apoio à população idosa à proteção de crianças em risco, passando pelo apoio aos sem-abrigo, entre muitas outras atividades. Acompanhando Maria do Lurdes Rodrigues, a criação desta ordem foi um erro, pois alimenta um corporativismo abusivo, que apenas visa reservar para os licenciados em serviço social um segmento importante do mercado de trabalho numa área que é, necessariamente, multidisciplinar(9). Impede-se, assim, licenciados, mestres e mesmo doutorados em áreas muito relevantes para o setor social (da gerontologia à sociologia, passando pela gestão ou economia social, por exemplo) de aceder a empregos, seja no Estado, seja no universo das IPSS.
É, assim, questionável que um Pais, com uma economia de mercado assente na livre concorrência e dotado de uma Constituição que protege a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1) e estabelece o carácter excecional das ordens, crie tantas ordens profissionais, que condicionam o acesso a muitas profissões, sem que se vislumbre qual o interesse público que se visa proteger. Como afirma Vital Moreira, “a proliferação neocorporativista de ordens e câmaras profissionais, por via de regra protecionistas e "malthusianas", numa época dominada pela liberalização e concorrência na prestação de serviços profissionais, constitui um dos fenómenos mais estranhos da nossa vida institucional.”(10) Curiosamente, a maioria das ordens profissionais teve o patrocínio do Partido Socialista. Foi o que aconteceu, em 1998, com a transformação da APB-Associação Portuguesa de Biólogos na Ordem dos Biólogos ou da Associação Portuguesa de Economistas na Ordem dos Economistas. Ou, em 2010, quando, por impulso da Associação Portuguesa dos Nutricionistas, é criada a Ordem dos Nutricionistas. Também foi pela mão do Partido Socialista, que, em 2019, as Associações dos Profissionais do Serviço Social e dos Fisioterapeutas dão lugar às Ordens dos assistentes sociais e dos fisioterapeutas.
Em mente está, sobretudo, o exercício de profissão liberal que requeira, não apenas uma habilitação académica, mas a observância de princípios deontológicos e de elevados padrões de complexidade técnica, que o Estado enquanto tal não tem capacidade de regular. Por isso delegando nas associações públicas profissionais a regulação do acesso à profissão, bem como a supervisão do seu bom exercício, através do poder disciplinar.
No entanto, o panorama do exercício das profissões liberais alterou-se, já que muitos profissionais inscritos em ordens exercem a profissão no âmbito de uma relação laboral. Até a advocacia, apontada como exemplo típico de uma profissão liberal, não escapa a um fenómeno que muitos designam de “proletarização”, caracterizado pela integração de advogados em sociedades profissionais, que exercem a profissão sob a orientação de um sócio, com subordinação jurídica, própria duma relação laboral (independentemente do artifício jurídico utilizado para regular a relação entre o advogado e a sociedade de advogados como contrato de prestação de serviços). A este propósito, é elucidativo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de outubro de 2003, que, num litígio que opôs um advogado à sociedade de advogados onde trabalhava, considerou que pese embora a relação possa ter características híbridas (contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços) esta pode ser qualificada como integrando um contrato de trabalho, sempre que a atividade profissional depende de orientação e supervisão, sendo, portanto, juridicamente subordinada. Neste contexto, o Tribunal da Relação salientou que “... o advogado é, em geral, a profissão apontada como o modelo do profissional liberal, mas a realidade vem revelando cada vez mais um fenómeno novo, que alguns não hesitam em denominar como a “proletarização da advocacia” que deve merecer a atenção da sociedade(5). Esta tendência não é um exclusivo da advocacia, antes se verifica em outras profissões como a dos médicos (que trabalham no Estado-SNS e/ou nos grupos económicos da área da saúde) ou a dos farmacêuticos (em especial, depois da introdução da liberalização da propriedade das farmácias). Também existem profissões que não são liberais por natureza (assistentes sociais, biólogos, economistas, entre outras), mas que estão autorreguladas no âmbito das respetivas ordens profissionais.
Daí que seja pertinente a questão de saber para que servem, afinal, as ordens profissionais. Para, por delegação do Estado, exercer a missão pública de regular uma profissão e supervisionar o seu exercício, em nome do interesse público. Não é, seguramente, para proteger interesses corporativos dos profissionais nelas inscritos (restringindo, por diversos meios, o acesso à profissão ou não exercendo com diligência o seu poder sancionatório em relação aos profissionais que cometem infrações deontológicas e profissionais). Infelizmente, algumas ordens preocupam-se mais com a defesa de interesses dos seus profissionais ou com a prestação de serviços aos membros, do que com a missão de interesse público que o Estado lhes confiou e que é a sua verdadeira razão de existir(6). Como refere Vital Moreira, o Estado entregou às ordens “a tarefa de regulação e de supervisão profissional, designadamente no que respeita ao cumprimento dos deveres deontológicos e das boas práticas profissionais, bem como a punição das eventuais infrações (autodisciplina profissional). Ao contrário das associações de direito privado, que são de criação e de inscrição voluntária e que não dispõem de poderes de autoridade pública (salvo casos excecionais de delegação), as ordens profissionais - como se denominam oficialmente entre nós desde o início, copiando a designação italiana - são criadas por lei e são de inscrição obrigatória, como condição de exercício da profissão, sendo caracterizadas pelos poderes públicos que lhe são conferidos legalmente, designadamente na área da disciplina profissional. Como é inerente à sua natureza de organismos de base associativa, as ordens acumulam o exercício de poderes públicos, em nome e representação do Estado, com a representação e defesa dos interesses coletivos da respetiva profissão, o que lhe confere uma natureza dualista, que pode levar a verdadeiras contradições, sempre que a defesa dos interesses profissionais as conduzirem a opor-se às políticas públicas para o respetivo setor. Mesmo fora de qualquer conflito, há sempre o risco de as ordens dedicarem os seus meios e recursos financeiros mais à promoção dos interesses profissionais do que ao desempenho das tarefas públicas que as justificam”(7).
2. Um Estado capturado por interesses profissionais corporativos: a criação “desmesurada” de ordens profissionais a partir dos anos 90
Apesar da criação de ordens profissionais ter, no quadro constitucional e legal vigente, carácter excecional, a partir dos anos 90 existiu uma proliferação de ordens profissionais, seja como “upgrading” de câmaras profissionais (associações públicas) ou para satisfazer reivindicações de associações privadas de profissionais.
Não é de admirar que estas associações exerçam enorme pressão sobre o legislador para que a profissão possa ser objeto de autorregulação no âmbito de uma ordem profissional. É que a conversão de associações de profissionais de direito privado em ordens permite-lhes não apenas velar pelo cumprimento de deveres deontológicos no exercício da profissão (sendo, portanto, dotadas pelo Estado de poder disciplinar), mas também regular o acesso ao mercado de trabalho dos profissionais, que passam a ter de cumprir requisitos restritivos de inscrição na ordem, sem a qual não podem exercer a profissão para a qual estão academicamente habilitados. Esta tendência das ordens de restringir excessivamente o acesso à profissão autorregulada, criando as mais diversas barreiras (frequência de cursos, taxas elevadas, estágios excessivamente longos, etc.), que Vital Moreira designa de “malthusianismo profissional”(8), é acompanhada da tentação de reservar para a profissão um número crescente de atos exclusivos, constituindo, assim, verdadeiras reservas de mercado de trabalho.
É o que acontece, por exemplo, com a recém-criada Ordem dos Assistentes Sociais, que reserva aos licenciados em serviço social (uma licenciatura de banda muito larga, em que se aprende “um pouco de tudo”) um emprego no Estado ou nas IPSS nas mais diversas áreas de intervenção social, desde o apoio à população idosa à proteção de crianças em risco, passando pelo apoio aos sem-abrigo, entre muitas outras atividades. Acompanhando Maria do Lurdes Rodrigues, a criação desta ordem foi um erro, pois alimenta um corporativismo abusivo, que apenas visa reservar para os licenciados em serviço social um segmento importante do mercado de trabalho numa área que é, necessariamente, multidisciplinar(9). Impede-se, assim, licenciados, mestres e mesmo doutorados em áreas muito relevantes para o setor social (da gerontologia à sociologia, passando pela gestão ou economia social, por exemplo) de aceder a empregos, seja no Estado, seja no universo das IPSS.
É, assim, questionável que um Pais, com uma economia de mercado assente na livre concorrência e dotado de uma Constituição que protege a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1) e estabelece o carácter excecional das ordens, crie tantas ordens profissionais, que condicionam o acesso a muitas profissões, sem que se vislumbre qual o interesse público que se visa proteger. Como afirma Vital Moreira, “a proliferação neocorporativista de ordens e câmaras profissionais, por via de regra protecionistas e "malthusianas", numa época dominada pela liberalização e concorrência na prestação de serviços profissionais, constitui um dos fenómenos mais estranhos da nossa vida institucional.”(10) Curiosamente, a maioria das ordens profissionais teve o patrocínio do Partido Socialista. Foi o que aconteceu, em 1998, com a transformação da APB-Associação Portuguesa de Biólogos na Ordem dos Biólogos ou da Associação Portuguesa de Economistas na Ordem dos Economistas. Ou, em 2010, quando, por impulso da Associação Portuguesa dos Nutricionistas, é criada a Ordem dos Nutricionistas. Também foi pela mão do Partido Socialista, que, em 2019, as Associações dos Profissionais do Serviço Social e dos Fisioterapeutas dão lugar às Ordens dos assistentes sociais e dos fisioterapeutas.
Ordens Profissionais (associações públicas profissionais) em Portugal
3. A reforma do regime jurídico das ordens profissionais proposta pelo Partido Socialista: um imperativo de uma democracia liberal
3.1. As recomendações internacionais
A reforma do regime jurídico das ordens profissionais proposta pelo PS responde a recomendações internacionais, agora transformadas num compromisso do País no contexto do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
No dia 13 de julho de 2021, o Conselho (ECOFIN) adotou a Decisão de Execução que aprova o PRR de Portugal, no valor de 16.6 mil milhões de euros para apoiar a economia portuguesa até 2026. Aí estão previstos investimentos essenciais ao aumento da resiliência económica e social e da capacidade de resposta do Pais aos grandes desafios europeus (transição digital e combate às alterações climáticas), bem como um conjunto de reformas estruturais, de onde consta a revisão do regime jurídico das ordens profissionais, até ao final de 2022. Portugal comprometeu-se, assim, a rever a lei relativa às profissões autorreguladas, para responder a quatro objetivos: (1) Separar, nas ordens, as funções de regulação e de representação; (2) Reduzir restrições no acesso a profissões reguladas, que deve apenas ser limitado para salvaguarda de interesses constitucionais e com respeito pelos princípios da necessidade e proporcionalidade; (3) Eliminar restrições à propriedade e à gestão de sociedades profissionais, com salvaguarda dum regime de prevenção de conflitos de interesses; (4) Permitir as sociedades profissionais multidisciplinares(11).
A revisão desta legislação não é, no entanto, uma novidade do PRR. É uma recomendação que a UE e a OCDE fazem há anos, sem sucesso. Por isso, não surpreende que a UE tenha feito depender a transferência de verbas do PRR da sua concretização, “obrigando”, por esta via, o País a implementar o que até agora era uma recomendação.
Com efeito, desde 2013, que o Conselho Europeu alerta para a necessidade de os Estados-Membros identificarem e eliminarem entraves no acesso a profissões reguladas, de forma a criar oportunidades de emprego e aumentar o potencial de crescimento económico na Europa.
Em 2017, a Comissão Europeia adotou uma Comunicação relativa à reforma da regulação dos serviços profissionais (COM (2016) 820, de 10 de janeiro de 2017), onde identifica entraves resultantes da regulação nacional, que não visam necessariamente a consecução de objetivos de interesse geral ou não são adequados, necessários ou proporcionais. Fazendo apelo a diversos estudos, a Comissão considera que a redução destes entraves pode aumentar a produtividade e a eficiência da economia, bem como o emprego (estima-se que possa conduzir a um aumento de 3 a 9% de pessoas a trabalhar neste tipo de profissão). Assim, a eliminação de requisitos restritivos e injustificados de acesso e exercício das profissões autorreguladas pode contribuir para um maior dinamismo do mercado e é benéfica para os consumidores, sob a forma da redução de preços resultante da diminuição de margens de lucro, muitas vezes excessivas e injustificadas. Em relação a Portugal e à regulação das profissões analisadas (arquitetos, engenheiros, contabilistas, ROC e advogados), a Comissão recomenda a revisão do elevado número de atividades reservadas (arquitetos, engenheiros, advogados), a análise da proporcionalidade dos requisitos de participação acionista nas sociedades profissionais (contabilistas, ROC, advogados) ou a eliminação de restrições às sociedades multidisciplinares (advogados).
Por outro lado, a Diretiva 2018/958, de 28 de junho de 2018, impõe uma avaliação da proporcionalidade antes da introdução ou alteração de normas que regulam o acesso a profissões reguladas, para evitar obstáculos injustificados ou desproporcionados ao exercício do direito fundamental à livre escolha de uma atividade profissional. Assim, qualquer medida que restrinja o acesso e o exercício deste tipo de profissão deve ser justificada por um objetivo legítimo de interesse público, não discriminatória, adequada e proporcional (o objetivo legítimo não pode ser alcançado por medida menos restritiva).
Também no âmbito do Semestre Europeu (sistema de coordenação das políticas económicas, orçamentais e de emprego dos Estados-membros, assente numa avaliação, pela Comissão Europeia, dos programas nacionais de reformas ou de convergência que cada um apresenta anualmente) o Conselho tem recomendado a Portugal a revisão da legislação sobre as ordens profissionais. Assim, em 2019, considerou que os esforços de Portugal para reduzir a carga regulamentar das profissões reguladas, que tiveram tradução na Lei n.º 2/2013, foram travados ou mesmo revertidos pelos estatutos das diferentes ordens, continuando a verificar-se a imposição de restrições regulamentares e administrativas que são um entrave à concorrência, aos níveis de preços, inovação e qualidade de serviços. Em especial, recomendou que fosse dada uma resposta às recomendações da Comissão sobre a regulação dos serviços profissionais e à análise da OCDE de 2018 sobre as profissões autorreguladas de Portugal (em cooperação com a Autoridade da Concorrência)(12).
A análise da OCDE sobre o impacto da legislação relativa a treze ordens na concorrência resultou dum projeto iniciado em 2016, em estreita colaboração com Autoridade da Concorrência. Envolveu muitas instâncias nacionais, desde ministérios às ordens profissionais (advogados, arquitetos, contabilistas certificados, revisores oficiais de contas, despachantes alfandegários, economistas, engenheiros, farmacêuticos, notários, nutricionistas, engenheiros técnicos e solicitadores e agentes de execução), passando por associações de profissionais e pela DECO. O Relatório da OCDE, de 2018, identificou várias restrições legais que impedem a concorrência, cuja eliminação conduziria a uma redução do preço de serviços profissionais (cerca de 2,5%) e teria um impacto anual positivo na economia portuguesa de 128 milhões de euros(13). Destacam-se as seguintes recomendações:
- Separação, nas ordens profissionais, das funções regulatória e de representação, através da criação de um órgão de supervisão independente, com elementos externos às ordens (pessoas de reconhecido mérito, académicos, representantes dos consumidores), a quem seria atribuída a função de regular o acesso à profissão e supervisionar o cumprimento dos deveres profissionais.
- Eliminação de certas atividades reservadas.
- Abertura da propriedade e da gestão das sociedades de profissionais a pessoas estranhas à profissão e eliminação de barreiras às sociedades multidisciplinares.
Em 2019, a OCDE voltou a recomendar a Portugal a redução de barreiras regulatórias nas profissões autorreguladas e a alteração de regras ao nível da supervisão do acesso a estas profissões (que deve estar a cargo de um órgão independente), como medidas que estimulam o investimento produtivo(14).
As recomendações da OCDE foram vertidas, em 2018, num Plano de Ação para a Reforma Legislativa e Regulatória de treze profissões autorreguladas da Autoridade da Concorrência(15). Aí são propostas várias alterações à Lei n.º 2/2013 (Lei-Quadro das ordens profissionais) e aos estatutos das ordens. Salienta-se, mais uma vez, a necessidade de separar a função representativa das ordens da sua função de regulação da profissão, confiando esta última a um órgão independente composto não apenas por membros das ordens mas também por pessoas externas à profissão, para atenuar o conflito de interesses inerente a um sistema de autorregulação. Para além de propor a redução de atos exclusivos, em obediência aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, a Autoridade da Concorrência defende, ainda, uma revisão dos critérios de acesso às profissões reguladas (redução da duração máxima do estágio, avaliação do estágio de acesso à profissão por personalidades externas, abolição de duplicações de estágio). Por fim, destaca-se a abolição de normas que restrinjam a propriedade e a gestão de sociedades profissionais a membros inscritos na ordem profissional ou proíbam sociedades profissionais multidisciplinares.
3.2. O projeto de lei n.º 974/XIV/3 do Partido Socialista, que altera Lei-Quadro das ordens profissionais, com vista ao reforço do interesse público, da autonomia e independência da regulação e promoção de acesso a atividades profissionais
Tendo em consideração as recomendações da UE e da OCDE, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista apresentou o projeto de lei n.º 974/XIV/3, que altera a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, com vista ao reforço do interesse público, da autonomia e independência da regulação e promoção de acesso a atividades profissionais(16). Esta iniciativa foi debatida no dia 13 de outubro de 2021 e aprovada, na generalidade, no dia 15 de outubro de 2013(17). Desceu à Comissão de Trabalho e Segurança Social para discussão na especialidade e foi colocada em consulta pública até ao dia 24 de novembro de 2021.
Este projeto de lei também concretiza o compromisso eleitoral, que o PS assumiu nas eleições legislativas de 2019, de garantir a liberdade de acesso à profissão, como direito constitucionalmente garantido, “impedindo práticas que limitem ou dificultem o acesso às profissões reguladas, em linha com as recomendações da OCDE e da Autoridade da Concorrência”(18). Foi, igualmente, o resultado dum longo processo de audições do Grupo Parlamentar do PS sobre os aspetos essenciais desta reforma. Um processo que teve início no dia 6 de março de 2020, com uma audição ao CNOP (Conselho Nacional das Ordens Profissionais), onde a maioria dos Bastonários esteve presente. Prosseguiu com um conjunto de reuniões bilaterais com representantes das diferentes ordens (a primeira, com o Bastonário da Ordem dos Advogados, logo no dia 9 de março), associações representativas de profissionais, sindicatos, associações de estudantes e outros atores, como a Autoridade da Concorrência.
Com esta iniciativa não se pretende beliscar as principais funções das ordens profissionais de autorregulação de uma determinada profissão, tal como decorrem do artigo 5.º da Lei n.º 2/2013: representar e defender os interesses da profissão e garantir o seu adequado exercício em prol dos interesses dos destinatários de serviços profissionais. A primeira função exerce-se, sobretudo, pela regulação do acesso à profissão, pois o exercício de profissões autorreguladas depende de inscrição na respetiva ordem, que pode estar sujeita ao cumprimento de requisitos mais ou menos exigentes (cursos, estágios, exames finais, etc.). Já a segunda função é exercida através do poder disciplinar que as ordens têm sobre os seus membros para assegurar o cumprimento de deveres deontológicos e profissionais, fomentando, assim, a confiança dos destinatários dos serviços na qualidade dos mesmos.
Numa democracia moderna, a defesa de interesses de uma classe de profissionais é essencial, mas é missão dos sindicatos ou de associações privadas livremente criadas. Não é missão de ordens com poderes delegados do Estado e que devem orientar a sua ação pelo único objetivo que as justifica: defender o interesse público no exercício das suas funções regulatórias. É esta missão que a iniciativa legislativa do PS visa garantir. Garantir que as ordens profissionais exercem com isenção e independência o seu poder de regular deontologicamente uma profissão. Garantir que regulam de forma isenta o acesso dos jovens academicamente habilitados a uma profissão regulada, não o limitando de forma injustificada ou desproporcionada. Garantir que exercem a sua importante função de supervisão e de disciplina profissional de forma independente e com vista à proteção dos destinatários dos serviços profissionais.
Para atingir estes objetivos são propostas alterações em quatro matérias reguladas pela Lei n.º 2/2013, ao mesmo tempo que se reforça a sua prevalência hierárquica sobre normas legais e estatutárias que as contrariem (artigo 52.º, n. º1), mediante a revogação do n.º 1 do artigo 33.º, que funciona como um alçapão que permite aos estatutos das ordens amplas derrogações.
O primeiro grupo de alterações versa sobre a constituição e as atribuições das ordens. Quanto à constituição de novas ordens, propõe-se a audição obrigatória não apenas das associações representativas das profissões, mas também de outras entidades interessadas, como os reguladores, as instituições de ensino superior, as associações científicas das áreas abrangidas, a Autoridade da Concorrência e os representantes dos consumidores (alteração ao artigo 3.º). Por outro lado, clarifica-se a principal missão das ordens (defender os interesses gerais de uma profissão, no respeito pelos direitos e interesses dos consumidores), atribuindo-lhes, também, poder de fiscalização para permitir uma atuação disciplinar mais eficaz sobre os profissionais infratores (alterações ao artigo 5.º). Também ficam proibidas de exercer não apenas atividades de natureza sindical (como resulta da Constituição), mas também de carácter comercial. Por fim, ficam impedidas de estabelecer, unilateralmente, restrições à liberdade de acesso e exercício de uma profissão, reforçando-se, assim, a reserva de lei em matéria de restrições a direitos fundamentais(19).
O segundo grupo de alterações visa introduzir maior transparência e independência no acesso a profissões reguladas e eliminar restrições injustificadas ou desproporcionadas (artigos 8.º e 24.º). As ordens podem continuar a exigir como condição de acesso à profissão (inscrição) a realização de um estágio profissional (com ou sem fases de formação) e mesmo uma avaliação para verificar as capacidades profissionais do candidato. Mas um eventual estágio profissional só poderá ser exigido se não fizer parte da formação académica do candidato, deve ser remunerado e não poderá exceder 12 meses. Por outro lado, nos casos em que seja exigido um curso de formação, este não poderá incluir matérias que já integram a necessária formação académica do candidato. Estando todos os cursos conferentes de grau académico sujeitos a um processo de acreditação por uma entidade independente (A3ES), que conta com a participação das ordens, não faz qualquer sentido que um jovem com um curso superior tenha de frequentar (e pagar) um curso de formação da ordem sobre matérias que já foram avaliadas pela Instituição de Ensino Superior. Com a agravante que, ao contrário da formação académica, a que é ministrada nas ordens não está sujeita a qualquer controlo de qualidade ou certificação. Por fim, e para tornar o acesso às profissões reguladas mais transparente e isento, qualquer exame final de ingresso deve ser realizado e avaliado por um júri independente, que integre personalidades de reconhecido mérito que não sejam membros da ordem profissional. Previne-se, assim, a eventual utilização abusiva por parte dos avaliadores (profissionais inscritos na ordem) deste tipo de condicionamento para restringir a entrada dos mais jovens na profissão.
Em terceiro lugar, este projeto de lei prevê alterações à estrutura organizativa das ordens profissionais, para tornar a sua função regulatória e disciplinar mais independente ou menos corporativa. Destacam-se as seguintes:
Por um lado, densificam-se as competências e a composição do órgão de supervisão, previsto como órgão independente desde 2013 (artigo 15.º da Lei n.º 2/2013), introduzindo na Lei um novo artigo que lhe é dedicado (artigo 15.º-A). Assim, para além da sua missão de velar pela legalidade da atividade dos órgãos das ordens (já prevista na lei), são reforçadas as suas competências em matéria de regulação da profissão (determinação das regras de estágio e avaliação final, fixação de taxas relativas a procedimentos de acesso e inscrição na ordem, reconhecimento de competências profissionais obtidas no estrangeiro) e em matéria disciplinar (instância de recurso do órgão disciplinar eleito pela assembleia representativa, que deve passar a integrar personalidades de reconhecido mérito externas à ordem, reforçando-se, também aqui, a independência e isenção da função disciplinar). Este órgão de supervisão é eleito pela assembleia representativa dos profissionais (como não poderia deixar de ser, sob pena de desconformidade constitucional), e deve integrar não apenas profissionais inscritos na ordem, mas também membros externos (dois académicos e uma personalidade de reconhecido mérito), livre e democraticamente escolhidos pelos profissionais.
Por outro lado, propõe-se que o provedor dos destinatários de serviços, previsto na lei desde 2013, saia do papel e passe a ser obrigatório, de forma a reforçar a missão das ordens de defesa dos destinatários dos serviços (artigo 20.º). Este provedor deve ser escolhido pelo Bastonário, com base numa lista de personalidades com perfil adequado para a defesa dos consumidores. Para exercer a sua missão, o provedor passa a ser membro por inerência do órgão de supervisão e é-lhe conferida legitimidade para participar factos suscetíveis de constituir infração disciplinar e recorrer das decisões do órgão disciplinar (artigo 18.º).
Por fim, tendo em consideração a natureza pública das ordens, propõe-se uma regra da paridade de género nos órgãos eletivos (40%), salvaguardando a especificidade da predominância feminina ou masculina de algumas profissões (artigo 15.º).
O quarto grupo de alterações prende-se com o regime jurídico do exercício de profissões reguladas através de sociedades profissionais (artigo 27.º). Em especial, as sociedades multidisciplinares deixam de poder ser proibidas, embora passam estar sujeitas a condições para prevenir conflitos de interesses, garantir a observância de deveres deontológicos, salvaguardar o sigilo profissional e garantir a independência técnica das várias profissões. Esta é uma matéria muito controvertida, sobretudo para os advogados. Mas é uma medida que pode, sobretudo, beneficiar os jovens profissionais e as pequenas e médias empresas. Os primeiros porque poderão oferecer serviços inovadores (tipo “balcão único”) com redução de custos de contexto, logo a preços mais competitivos. As segundas porque terão acesso a serviços a preços que podem pagar.
Em suma, estas são as principais medidas do projeto de lei n.º 974/XIV/3 do Partido Socialista, fortemente contestadas, muitas vezes com argumentos falaciosos e enganadores, por certas ordens profissionais, que recusam qualquer alteração do status quo. Não obstante, a iniciativa foi viabilizada, na generalidade, por uma muito significativa maioria parlamentar (apenas CDS-PP e CH votaram contra).
A sua aprovação iria conduzir a uma revisão dos estatutos das ordens e a uma avaliação dos regimes de reserva de atividades em vigor, com base numa avaliação prévia da Autoridade da Concorrência, para assegurar que só existem atividades exclusivas quando razões imperiosas de interesse público constitucionalmente o imponha e desde que tal reserva seja adequada, necessária e proporcional (artigo 6.º do projeto de lei).
A discussão e aprovação deste projeto de lei na especialidade foi, no entanto, prejudicada pela dissolução da Assembleia da República e antecipação de eleições legislativas, o que provocará a sua caducidade. Independentemente do resultado das eleições legislativas de 2022, esta iniciativa deve ser retomada na próxima legislatura. Não apenas porque constitui um compromisso assumido por Portugal em Bruxelas, no âmbito do PRR, mas, sobretudo, porque é uma reforma necessária à defesa do interesse público num Estado de direito democrático e para libertar o País de um corporativismo atávico, que tanto mal lhe faz.
no. 03 // julho 2022
Artigo
FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
fundacaorespublica.pt
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
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1. Sobre o sistema de organismos corporativos como alicerce do Estado Novo, ver Freire, Dulce/Ferreira, Nuno Estêvão, “Construção do sistema corporativo em Portugal (1933-1974)”, in Ferreira, Fátima M./Mendes, Francisco A./ Torres, Jorge M. (Coord.), Organizar o País de Alto a Baixo, Edições Tenacitas: Coimbra, 2016, pp. 31-51.
2. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª Ed., Almedina: Coimbra, 2010, p. 811.
3. Idem, pp. 812-813.
4. Nos termos do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 6/2008, de 13 de fevereiro de 2008 (revogada pela Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), a constituição de ordens profissionais é excecional e visa a satisfação de necessidades especificas, podendo apenas ter lugar quando a regulação da profissão (controlo de acesso e exercício, elaboração de normas técnicas e deontológicas, regime disciplinar autónomo) envolve um interesse público de especial relevo que o Estado não deva prosseguir por si próprio.
5. Acórdão publicado in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/5c199a57ea91d8cc80256e60004e388f?OpenDocument
6. Estas situações são frequentemente denunciadas por Vital Moreira no blogue Causa Nossa. Cfr. https://causa-nossa.blogspot.com/search?q=Ordens
7. “Para que servem as ordens profissionais? Público de 31de agosto de 2010, disponível in:
https://www.publico.pt/2010/08/31/jornal/para-que-servem-as-ordens-profissionais-20113088
8. Malthusianismo profissional, 20 de outubro de 2004, Causa Nossa, https://causa-nossa.blogspot.com/search?q=Ordens
9. A criação da Ordem dos Assistentes Sociais foi um erro, Público, 3 de novembro de 2020.
10. Corporativismo (7): Nem mais uma Ordem, sff!, in Causa Nossa, https://causa-nossa.blogspot.com/search?q=Ordens
11. Decisão de Execução do Conselho relativa à aprovação do PPR de Portugal, p. 82, disponível in: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-10149-2021-ADD-1/pt/pdf
12. A Recomendação do Conselho relativa a 2019 está disponível in: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-10175-2019-INIT/pt/pdf
13. OCDE Competition Assessment Reviews – Portugal, Vol. II – Self Regulated Professions, 2018, disponível in: https://www.oecd.org/daf/competition/Portugal-OECD-Competition-Assessment-Review-Vol2-Professions-preliminary-version.pdf
14. Ver, por ex. Estudos Económicos da OCDE- Portugal 2019, in https://read.oecd-ilibrary.org/economics/oecd-economic-surveys-portugal-2019_eco_surveys-prt-2019-en#page83.
15. Cfr. síntese deste Plano de Ação, in: https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/documentos/outros/Plano-de-acao-da-AdC-para-a-reforma-legislativa-e-refulatoria-para-profissoes-liberais.pdf
16. Disponível in: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=121163
17. Este projeto de lei foi viabilizado com amplo consenso parlamentar, pois apenas o CDS-PP e o CH votaram contra. PS, PAN, Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira votaram a favor; PSD, BE, PCP, PEV, IL e deputada não inscrita Cristina Rodrigues viabilizaram o projeto de lei com a abstenção.
18. Programa Eleitoral do Partido Socialista – Legislativas 2019 (Fazer ainda mais e melhor), p. 38, disponível in: https://ps.pt/wp-content/uploads/2021/02/Programa-Eleitoral-PS-2019.pdf
19. A este propósito ver o acórdão do Tribunal Constitucional 3/2011, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da disposição do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados, que criou um novo exame escrito prévio ao ingresso no estágio para licenciados pós- Bolonha sobre matérias que constam do plano curricular da licenciatura em direito. A exigência deste exame prévio de ingresso no estágio profissional constitui uma restrição ao direito de livre escolha de profissão, consagrado no artigo 47.º da CRP, que só pode ser imposta por lei da Assembleia da República. Acórdão disponível in: https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/3-2011-280942.