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JOSÉ ANTÓNIO VIEIRA DA SILVA Director Executivo da Fundação Res Publica, e atualmente Conselheiro Especial do Comissário Europeu para o Emprego e Direitos Sociais Nicolas Schmit. É licenciado em Economia, no Instituto Superior de Economia. Anteriormente, foi Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (2015/2019 e 2005/2009) e de Economia e Inovação (2009/2011), e Deputado ao Parlamento Português de 2002 a 2005 e de 2011 a 2015. Foi também Palestrante Convidado no Instituto Universitário de Lisboa. ________________________________ |
DESIGUALDADES E POBREZA EM PORTUGAL |
RESUMO Este artigo procura proceder a uma sintética avaliação de alguns dos principais indicadores de desigualdade social e de pobreza em Portugal nas vésperas da eclosão da pandemia do Covid19. Identificam-se as principais tendências de evolução das últimas décadas e alguns dos seus fatores explicativos, sempre tomando como base a informação produzida pelo Eurostat. Esta síntese valoriza o efeito cíclico das conjunturas vividas e identifica a evolução positiva, em termos sociais, que marcou a segunda metade desta década bem como aas suas fragilidades. Numa segunda parte procura-se identificar alguns dos principais efeitos de mudança da situação económica e social provocados pela crise, ensaiando a identificação de alguns dos impactos que estas mudanças estarão a produzir nos planos da desigualdade e da evolução da pobreza. ABSTRACT This article seeks to carry out a synthetic assessment of some of the main indicators of social inequality and poverty in Portugal on the eve of the outbreak of the Covid19 pandemic. The main trends of evolution of the last decades and some of their explanatory factors are identified, always based on the information produced by Eurostat. This synthesis values the cyclical effect of the situations experienced and identifies the positive evolution, in social terms, that marked the second half of this decade, as well as its weaknesses. The second part seeks to identify some of the main effects of changes in the economic and social situation caused by the crisis, attempting to identify some of the impacts that these changes will have on the scope of inequality and the evolution of poverty. |
A Situação pré-Covid
A persistência de um sério problema de desigualdades sociais em Portugal constituiu uma realidade que resistiu às enormes mudanças que o país viveu nas últimas décadas.
As desigualdades sociais possuem, como o demonstra ampla literatura científica, uma forte dimensão interdisciplinar.
Ela expressa-se nas áreas dos principais indicadores sociais: educação, saúde, habitação ou proteção social, mas igualmente no acesso a diversas áreas do bem-estar coletivo como a cultura ou o acesso ao desporto.
Desde há muito que, no entanto, a dimensão económica tem vindo a ser utilizada como espaço privilegiado para avaliar a dimensão, evolução e comparação das desigualdades quer no plano nacional quer no plano internacional.
E dentro da esfera económica a variável rendimento assume uma significativa predominância no estudo das desigualdades.
Duas questões se levantam com enorme relevância: a primeira, será o “rendimento” ou o “produto “, como expressão da quantidade de recursos monetários que uma comunidade, uma família ou um indivíduo têm acesso, uma boa síntese do seu nível de bem-estar e, por isso, representativo dos níveis de igualdade ou desigualdade? A segunda, haverá uma variável síntese no plano económico suficientemente robusta para assumir essa dimensão de acesso ao bem-estar?
Parece claro que, se os indicadores de rendimentos não são um indicador exaustivo do nível de bem-estar (a acessibilidade aos serviços de saúde pode não ser condicionada pelos rendimentos monetários, por exemplo) são, em termos médios, uma boa aproximação a essa realidade.
No entanto, é hoje claro que a abordagem do rendimento como disponibilidade de recursos monetários num certo período de tempo não é capaz de refletir plenamente situações de desigualdade na acumulação de riqueza. E a riqueza determina, em grande medida, não só a sustentabilidade dos recursos no tempo, mas também a capacidade de quem a possui influenciar de forma determinante a formação dos fatores que explicam o nível de bem-estar de uma comunidade.
Acresce, por outro lado, que a desigualdade e pobreza, são conceitos que aparecem frequentemente interligados. Aliás, uma boa parte dos indicadores ditos de pobreza (p.e. a taxa de pobreza como expressão da parte de uma população que vive abaixo de um dado limiar de rendimentos) são verdadeiramente indicadores de desigualdade e completam retratos sociais que podem ser melhor compreendidos utilizando variáveis como o S80/S20, o Índice de Gini e o rendimento médio ou mediano.(1)
A referência a estes indicadores justifica-se, não por serem os únicos nem os mais sofisticados, mas por serem alguns dos que são utilizados regularmente pelos serviços estatísticos da União Europeia (Eurostat) e, como tal, serem frequentemente utilizados para caracterizar a situação portuguesa nas vésperas da eclosão da Crise do Covid 19.(2)
Por essa razão os dados apresentados são, salvo referência em contrário, resultados de cálculos efetuados pelo autor no final de 2019 com recurso às bases de dados do Eurostat.
Conforme acima afirmado existe, no quadro dos indicadores mais utilizados em matéria de desigualdades, uma elevada proximidade aos indicadores de pobreza relativa. De facto poderíamos afirmar que, para além de paralelismos técnicos, por exemplo das taxas de pobreza monetária, também do ponto de vista económico e sociológico a pobreza é, de forma generalizada, filha das desigualdades. Sendo, dessa forma fortemente influenciada pelas características estruturais de uma dada sociedade como também pelos seus ciclos evolutivos.
Este último fator resulta muito claro na evolução portuguesa nas últimas décadas.
Conforme observado na Fig. 1, quer a evolução da linha de pobreza monetária, quer a taxa de pobreza acompanharam (especialmente a última) os ciclos económicos.
A persistência de um sério problema de desigualdades sociais em Portugal constituiu uma realidade que resistiu às enormes mudanças que o país viveu nas últimas décadas.
As desigualdades sociais possuem, como o demonstra ampla literatura científica, uma forte dimensão interdisciplinar.
Ela expressa-se nas áreas dos principais indicadores sociais: educação, saúde, habitação ou proteção social, mas igualmente no acesso a diversas áreas do bem-estar coletivo como a cultura ou o acesso ao desporto.
Desde há muito que, no entanto, a dimensão económica tem vindo a ser utilizada como espaço privilegiado para avaliar a dimensão, evolução e comparação das desigualdades quer no plano nacional quer no plano internacional.
E dentro da esfera económica a variável rendimento assume uma significativa predominância no estudo das desigualdades.
Duas questões se levantam com enorme relevância: a primeira, será o “rendimento” ou o “produto “, como expressão da quantidade de recursos monetários que uma comunidade, uma família ou um indivíduo têm acesso, uma boa síntese do seu nível de bem-estar e, por isso, representativo dos níveis de igualdade ou desigualdade? A segunda, haverá uma variável síntese no plano económico suficientemente robusta para assumir essa dimensão de acesso ao bem-estar?
Parece claro que, se os indicadores de rendimentos não são um indicador exaustivo do nível de bem-estar (a acessibilidade aos serviços de saúde pode não ser condicionada pelos rendimentos monetários, por exemplo) são, em termos médios, uma boa aproximação a essa realidade.
No entanto, é hoje claro que a abordagem do rendimento como disponibilidade de recursos monetários num certo período de tempo não é capaz de refletir plenamente situações de desigualdade na acumulação de riqueza. E a riqueza determina, em grande medida, não só a sustentabilidade dos recursos no tempo, mas também a capacidade de quem a possui influenciar de forma determinante a formação dos fatores que explicam o nível de bem-estar de uma comunidade.
Acresce, por outro lado, que a desigualdade e pobreza, são conceitos que aparecem frequentemente interligados. Aliás, uma boa parte dos indicadores ditos de pobreza (p.e. a taxa de pobreza como expressão da parte de uma população que vive abaixo de um dado limiar de rendimentos) são verdadeiramente indicadores de desigualdade e completam retratos sociais que podem ser melhor compreendidos utilizando variáveis como o S80/S20, o Índice de Gini e o rendimento médio ou mediano.(1)
A referência a estes indicadores justifica-se, não por serem os únicos nem os mais sofisticados, mas por serem alguns dos que são utilizados regularmente pelos serviços estatísticos da União Europeia (Eurostat) e, como tal, serem frequentemente utilizados para caracterizar a situação portuguesa nas vésperas da eclosão da Crise do Covid 19.(2)
Por essa razão os dados apresentados são, salvo referência em contrário, resultados de cálculos efetuados pelo autor no final de 2019 com recurso às bases de dados do Eurostat.
Conforme acima afirmado existe, no quadro dos indicadores mais utilizados em matéria de desigualdades, uma elevada proximidade aos indicadores de pobreza relativa. De facto poderíamos afirmar que, para além de paralelismos técnicos, por exemplo das taxas de pobreza monetária, também do ponto de vista económico e sociológico a pobreza é, de forma generalizada, filha das desigualdades. Sendo, dessa forma fortemente influenciada pelas características estruturais de uma dada sociedade como também pelos seus ciclos evolutivos.
Este último fator resulta muito claro na evolução portuguesa nas últimas décadas.
Conforme observado na Fig. 1, quer a evolução da linha de pobreza monetária, quer a taxa de pobreza acompanharam (especialmente a última) os ciclos económicos.
figura 1
Como é natural existe um relativo paralelismo entre esta evolução e a relação entre os níveis de rendimentos (20% mais elevados e 20% mais baixos).
Importa realçar que existindo uma tendência estrutural para a redução destes níveis de desigualdade, também ela é fortemente associada aos ciclos económicos.
Assim, assistimos a uma tendência para a redução da desigualdade na formação de rendimentos ainda que essa tendência tenha sido interrompida aquando do forte acréscimo do desemprego da segunda década do século XXI, regressando a uma convergência com os valores médios europeus até aos últimos dados conhecidos.
Importa realçar que existindo uma tendência estrutural para a redução destes níveis de desigualdade, também ela é fortemente associada aos ciclos económicos.
Assim, assistimos a uma tendência para a redução da desigualdade na formação de rendimentos ainda que essa tendência tenha sido interrompida aquando do forte acréscimo do desemprego da segunda década do século XXI, regressando a uma convergência com os valores médios europeus até aos últimos dados conhecidos.
figura 2 (3)
Conforme é facilmente verificável esta redução dos níveis de desigualdade resulta de uma evolução positiva dos rendimentos mais baixos e de uma evolução contrária do conjunto dos rendimentos mais elevados (ao nível dos 20%).
Este facto, verificável na Fig.3, continua a ser verdadeiro se compararmos os rendimentos ao nível dos percentis de 5% ainda que tal possa não acontecer se reduzirmos o percentil de rendimentos (p.e. para 1%, tal como vem acontecendo em diversas economias).
Este facto, verificável na Fig.3, continua a ser verdadeiro se compararmos os rendimentos ao nível dos percentis de 5% ainda que tal possa não acontecer se reduzirmos o percentil de rendimentos (p.e. para 1%, tal como vem acontecendo em diversas economias).
figura 3
Importa, no entanto, introduzir uma dimensão fundamental para esta reflexão e que se prende com o facto de, ao nível das comparações internacionais, continuarmos a trabalhar com dados de natureza relativa.
Ou seja, uma melhoria da posição relativa da taxa de pobreza ou mesmo de qualquer indicador de desigualdade, necessita sempre de ser avaliado à luz do que tem sido a evolução dos rendimentos globais nas diferentes economias.
Utilizando a informação que alimenta os indicadores de pobreza ou desigualdade resulta claro que o comportamento global da economia portuguesa neste século tem sido débil, para além de mostrar uma maior sensibilidade às fases recessivas dos ciclos económicos.
Ou seja, uma melhoria da posição relativa da taxa de pobreza ou mesmo de qualquer indicador de desigualdade, necessita sempre de ser avaliado à luz do que tem sido a evolução dos rendimentos globais nas diferentes economias.
Utilizando a informação que alimenta os indicadores de pobreza ou desigualdade resulta claro que o comportamento global da economia portuguesa neste século tem sido débil, para além de mostrar uma maior sensibilidade às fases recessivas dos ciclos económicos.
figura 4
A Figura 4 expressa bem essa realidade com a particularidade de mostrar, especialmente pós crise das dívidas soberanas, se registar um comportamento dos valores medianos mais positivo dos valores médios, o que é compatível com a melhoria dos indicadores comparados de desigualdades.
Os indicadores de pobreza que temos vindo a apresentar oferecem-nos uma imagem de conjunto da sociedade portuguesa, mas não evidenciam as posições relativas de diferentes grupos sociais.
Na situação face ao emprego salientam-se três aspetos fundamentais:
Os indicadores de pobreza que temos vindo a apresentar oferecem-nos uma imagem de conjunto da sociedade portuguesa, mas não evidenciam as posições relativas de diferentes grupos sociais.
Na situação face ao emprego salientam-se três aspetos fundamentais:
- Uma incidência bem mais forte das taxas de pobreza nos desempregados, sendo que a redução do número de desempregados não melhora a sua posição relativa. A concentração do desemprego nos desempregados de maior dificuldade de ingresso no mercado de trabalho (desempregados de muito longa duração) poderá explicar parcialmente esta realidade, bem como a redução da proteção social em situação de desemprego poderá ter igualmente um importante peso explicativo.
- A manutenção com pouca variação de uma percentagem de população com emprego vivendo abaixo da linha de pobreza é também uma realidade onde Portugal possuiu valores mais elevados que as medias europeias ainda que com tendência de aproximação;
- A população reformada, historicamente muito marcada pelos fenómenos da pobreza, tem vindo a ver reduzida essa percentagem situando-se perto dos valores médios.
figura 5
Emprego, Desemprego e Reformados (taxas de pobreza)
Emprego, Desemprego e Reformados (taxas de pobreza)
Uma análise mais detalhada ao valor da taxa de pobreza da população com emprego mostra-nos (Figura 6) que a taxa de pobreza é bem mais intensa no emprego não assalariado o qual enquadra as chamadas “formas atípicas de emprego” como o chamado trabalho independente. Em geral deteta-se um diferencial negativo para Portugal, especialmente face à região euro o que é compatível com a natureza de algum trabalho independente em Portugal.
Já no trabalho assalariado regista-se uma estabilidade das taxas de pobreza bem como uma significativa proximidade de Portugal aos valores europeus, nunca esquecendo que estamos a trabalhar com indicadores de natureza relativa.
Já no trabalho assalariado regista-se uma estabilidade das taxas de pobreza bem como uma significativa proximidade de Portugal aos valores europeus, nunca esquecendo que estamos a trabalhar com indicadores de natureza relativa.
figura 6
Relação com o Emprego (taxas de pobreza)
Relação com o Emprego (taxas de pobreza)
Duas outras óticas são estruturantes para perceber as dimensões internas aos fenómenos da desigualdade e da pobreza: a idade e o género.
Na primeira delas, já abordada indiretamente quando avaliamos a pobreza nos reformados, importa chamar a atenção para a relevância da pobreza infantil. Apesar de os indicadores monetários serem bem mais frágeis no seu poder explicativo, quando aplicados a crianças e jovens dependentes vale a pena cruzar a dimensão etária com este indicador.
Na primeira delas, já abordada indiretamente quando avaliamos a pobreza nos reformados, importa chamar a atenção para a relevância da pobreza infantil. Apesar de os indicadores monetários serem bem mais frágeis no seu poder explicativo, quando aplicados a crianças e jovens dependentes vale a pena cruzar a dimensão etária com este indicador.
figura 7
Diferença da taxa de pobreza face à zona euro – grupos etários
Diferença da taxa de pobreza face à zona euro – grupos etários
Para além dos indicadores dos grupos etários escolhidos (menos de 18 anos e menos de 6 anos) acompanharem as tendências cíclicas dos valores globais (o que se justifica já que a unidade de avaliação que serve de base aos cálculos do rendimento é a família) vale a pena realçar uma posição relativa mais favorável de Portugal no escalão etário mais baixo.
Apesar de, dada a fragilidade deste tipo de avaliação pela sua natureza monetária, é possível adiantar como explicação para este tipo de realidade razões de natureza demográfica já que tem sido clara a evidência, nos últimos anos, duma menor taxa de natalidade em famílias de rendimentos mais baixos, por relação à situação que se vivia num passado ainda próximo.
Já no que respeita às diferenças em matéria de género parece claro que a pobreza tem um rosto maioritariamente feminino no nosso país.
De todos os indicadores que poderíamos selecionar a observação da taxa de pobreza distinta por género para os maiores de 65 evidencia, na maioria dos anos, uma significativa diferença (mais elevada) nas taxas de pobreza das mulheres.
Esta situação, que tende a ser menos expressiva do que a diferença real dos rendimentos próprios, mostra como as diferenças salariais existentes tendem a gerar impactos duradouros mesmo após a idade da reforma.
Apesar de, dada a fragilidade deste tipo de avaliação pela sua natureza monetária, é possível adiantar como explicação para este tipo de realidade razões de natureza demográfica já que tem sido clara a evidência, nos últimos anos, duma menor taxa de natalidade em famílias de rendimentos mais baixos, por relação à situação que se vivia num passado ainda próximo.
Já no que respeita às diferenças em matéria de género parece claro que a pobreza tem um rosto maioritariamente feminino no nosso país.
De todos os indicadores que poderíamos selecionar a observação da taxa de pobreza distinta por género para os maiores de 65 evidencia, na maioria dos anos, uma significativa diferença (mais elevada) nas taxas de pobreza das mulheres.
Esta situação, que tende a ser menos expressiva do que a diferença real dos rendimentos próprios, mostra como as diferenças salariais existentes tendem a gerar impactos duradouros mesmo após a idade da reforma.
figura 8
Taxa de pobreza maiores de 65 anos
Taxa de pobreza maiores de 65 anos
Finalmente vale a pena abordar a avaliação estatística que o Eurostat produz relativamente a indicadores não monetários (acessibilidade a bens e serviços) e que dão origem, nomeadamente, à construção de indicadores de severidade da pobreza.
figura 9
Taxa de Privação Material Severa (%)
Taxa de Privação Material Severa (%)
Também aqui os ciclos económicos influenciam significativamente a evolução dos indicadores os quais são, no entanto, mais sensíveis à evolução das políticas públicas, nomeadamente aquelas que se relacionam com as políticas de mínimos sociais e à disponibilidade de serviços públicos.
O que trará a crise atual?
Apesar de já terem decorrido largos meses desde o aparecimento no mundo e a generalizada expansão na Europa da pandemia do Covid 19, estamos ainda longe de conseguir avaliar, mesmo numa dimensão aproximada, o seu impacto económico e social.(4)
Vários fatores concorrem para essa realidade.
Em primeiro lugar, a originalidade de uma expansão global de num vírus de elevado poder de transmissão e com grande capacidade de bloquear os instrumentos de saúde pública. De facto, é a primeira vez que a economia globalizada assiste a um fenómeno desta expansão e é, igualmente, a primeira vez que uma doença fortemente contagiosa “faz uso” dos mecanismos de circulação de pessoas e bens que o fenómeno da globalização acelerou a uma escala gigantesca.
Em segundo lugar, porque os mecanismos de defesa da saúde pública postos em marcha, ainda que com distinções, pelos diferentes países incluíram modernos mecanismos de distanciamento social (o confinamento) que se traduziu num congelamento temporário de importantes áreas das economias nacional e internacional, nomeadamente aquelas áreas fortemente associadas aos ritmos de circulação de pessoas que marcavam a era contemporânea. Esse congelamento mesmo que parcial possui efeitos recessivos de enorme dimensão com riscos de impactos tremendos em matéria de emprego.
Em terceiro lugar, porque as próprias medidas de confinamento afetaram de forma direta as instituições e os serviços com responsabilidades de avaliar e estimar a evolução económica e social.
Finalmente, o facto de a pandemia estar longe de estar controlada põe em causa as primeiras estimativas sobre os seus efeitos recessivos e sobre a sua duração.
No entanto, o conhecimento da natureza das medidas económicas e sociais tomadas para conter a pandemia e alguns estudos já efetuados permitem-nos refletir sobre os principais processos de mudança que estão já a produzir efeitos e sobre o risco da sua transformação e alargamento.
Relativamente aos primeiros – a natureza das medidas- importa salientar algumas realidades muito características desta crise:
Estas dimensões de mudança não podem ser, igualmente, dissociadas de transformações de hábitos e padrões de consumo cuja permanência e efeito estamos longe de conseguir estimar.
Um exercício de avaliação ou estimativa da natureza e profundidade que todos estes fatores transportarão para o desenvolvimento das desigualdades e fragilidades sociais é, ainda, de enorme dificuldade.
Parece ser, no entanto, suficientemente claro que, no que respeita à situação de Portugal, devem ser elencados um conjunto sério de fatores de risco e preocupação:
A recuperação desta crise será decerto muito exigente no muito difícil equilíbrio entre recuperar emprego com futuro ou recuperar emprego não importa qual.
Se o diálogo social e as políticas públicas, em Portugal e na Europa, não colocarem elevada exigência neste equilíbrio serão comprometidas as ambições de recuperar em convergência.
Como o serão se perdermos o momento para dar um forte impulso aos serviços públicos, nomeadamente nas áreas da educação e da ação social, que têm sobre si a responsabilidade de combater o terrível risco de perdermos gerações para a convicção do valor do trabalho, do conhecimento, da liberdade e do convívio democrático.
O que trará a crise atual?
Apesar de já terem decorrido largos meses desde o aparecimento no mundo e a generalizada expansão na Europa da pandemia do Covid 19, estamos ainda longe de conseguir avaliar, mesmo numa dimensão aproximada, o seu impacto económico e social.(4)
Vários fatores concorrem para essa realidade.
Em primeiro lugar, a originalidade de uma expansão global de num vírus de elevado poder de transmissão e com grande capacidade de bloquear os instrumentos de saúde pública. De facto, é a primeira vez que a economia globalizada assiste a um fenómeno desta expansão e é, igualmente, a primeira vez que uma doença fortemente contagiosa “faz uso” dos mecanismos de circulação de pessoas e bens que o fenómeno da globalização acelerou a uma escala gigantesca.
Em segundo lugar, porque os mecanismos de defesa da saúde pública postos em marcha, ainda que com distinções, pelos diferentes países incluíram modernos mecanismos de distanciamento social (o confinamento) que se traduziu num congelamento temporário de importantes áreas das economias nacional e internacional, nomeadamente aquelas áreas fortemente associadas aos ritmos de circulação de pessoas que marcavam a era contemporânea. Esse congelamento mesmo que parcial possui efeitos recessivos de enorme dimensão com riscos de impactos tremendos em matéria de emprego.
Em terceiro lugar, porque as próprias medidas de confinamento afetaram de forma direta as instituições e os serviços com responsabilidades de avaliar e estimar a evolução económica e social.
Finalmente, o facto de a pandemia estar longe de estar controlada põe em causa as primeiras estimativas sobre os seus efeitos recessivos e sobre a sua duração.
No entanto, o conhecimento da natureza das medidas económicas e sociais tomadas para conter a pandemia e alguns estudos já efetuados permitem-nos refletir sobre os principais processos de mudança que estão já a produzir efeitos e sobre o risco da sua transformação e alargamento.
Relativamente aos primeiros – a natureza das medidas- importa salientar algumas realidades muito características desta crise:
- A paralisação de muitas atividades económicas foi tomada de forma rápida e sem períodos de transição ou adaptação. Tal impunha a natureza da resposta a dar, mas o seu efeito económico, pelo seu caracter súbito, não tem paralelo com outros processos recessivos com mais longos processos de adaptação ou mesmo de reconversão de atividades;
- Em diversas atividades a rutura da produção ou prestação de serviços foi total, gerando uma queda por vezes igualmente total dos fluxos de rendimentos que alimentavam estas atividades;
- Os sectores económicos diretamente associados aos transportes, principalmente internacionais, sofreram uma contração sem paralelo, com todo o impacto que, a montante, se gerou ou está a gerar desde a indústria aos setores de serviços;
- Em alguns países os bloqueios à circulação atingiram de forma brutal as atividades turísticas com enormes reflexos a montante e a jusante das áreas centrais do fenómeno turístico – Portugal foi, sem hipótese de séria alternativa, dos países que mais sentiu este impacto;(5)
- As medidas de mitigação de amortecimento deste conjunto de fatores, dirigidas à sustentação de empresas, manutenção dos vínculos laborais e dos rendimentos das famílias, são por natureza medidas excecionais e transitórias, também pelo enorme impacto orçamental que geram.
Estas dimensões de mudança não podem ser, igualmente, dissociadas de transformações de hábitos e padrões de consumo cuja permanência e efeito estamos longe de conseguir estimar.
Um exercício de avaliação ou estimativa da natureza e profundidade que todos estes fatores transportarão para o desenvolvimento das desigualdades e fragilidades sociais é, ainda, de enorme dificuldade.
Parece ser, no entanto, suficientemente claro que, no que respeita à situação de Portugal, devem ser elencados um conjunto sério de fatores de risco e preocupação:
- A capacidade de recuperar dinâmicas de crescimento económico e de sustentação do emprego têm de ser as primeiras preocupações já que, assumindo um papel central nos níveis gerais de bem-estar, condicionam igualmente todo o conjunto de políticas públicas favoráveis ao reforço da coesão e da igualdade;
- O recuo generalizado de oportunidades de emprego e de rendimento, por vezes de natureza semiformal, é agravado pela natureza dos setores que sofreram mais duramente o impacto da crise nomeadamente os associados à fileira do turismo, da restauração e de outros serviços. O recuo em matéria de emprego irá, com grande probabilidade, agravar quer a dimensão da pobreza quer a dimensão da sua intensidade ou severidade;
- As transformações associadas à previsível retração de algumas indústrias fortemente integradas em complexas cadeias de valor (indústria aeronáutica p.e.) e às exigências de mudança de paradigmas tecnológicos associados às transformações climáticas (setor automóvel, p. e.) obrigam a dar centralidade aos riscos de desemprego estrutural em áreas de qualificação intermédia o que seria particularmente severo para a economia portuguesa;
- O risco de novo agravamento das condições de entrada no mercado de trabalho de gerações que não entraram ou que tiveram entradas particularmente instáveis e precária é extremamente sério e obriga a compromissos muito exigentes nos apoios à contratação.
- As políticas de mínimos sociais que estão mais distantes dos limiares de pobreza do que acontece em geral na União Europeia necessitam de ser reforçadas e de novo fortemente associadas a programas de combate à exclusão.
- Apesar de nem todos os indicadores já existentes apontarem nesse sentido existe uma probabilidade séria de um acréscimo real da feminização da pobreza, muito influenciada pela estrutura de género do emprego mais ameaçado.
A recuperação desta crise será decerto muito exigente no muito difícil equilíbrio entre recuperar emprego com futuro ou recuperar emprego não importa qual.
Se o diálogo social e as políticas públicas, em Portugal e na Europa, não colocarem elevada exigência neste equilíbrio serão comprometidas as ambições de recuperar em convergência.
Como o serão se perdermos o momento para dar um forte impulso aos serviços públicos, nomeadamente nas áreas da educação e da ação social, que têm sobre si a responsabilidade de combater o terrível risco de perdermos gerações para a convicção do valor do trabalho, do conhecimento, da liberdade e do convívio democrático.
no. 01 // fevereiro 2021
Artigo
FUNDAÇÃO RES PUBLICA
A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos.
fundacaorespublica.pt
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1. A explicação dos indicadores pode ser consultada em INE – Rendimento e Condições de Vida, Novembro de 2019.
2. Este texto, na sua primeira parte, segue de perto uma apresentação do autor na Conferência Anual da Res Publica em dezembro de 2019 sobre o tema DESIGUALDADES- FACTORES E DESAFIOS.
3. Rácio S80/S20: indicador de desigualdade na distribuição do rendimento, definido como o rácio entre a proporção do rendimento total recebido pelos 20% da população com maiores rendimentos e a parte do rendimento auferido pelos 20% de menores rendimentos.
4. O estudo dos primeiros dados conhecidos para Portugal pode ser analisado em:
- Silva, P.A., Carmo, R.M., Cantante, F., Cruz, C., Estêvão, P., Manso, L., Pereira, T.S., Lamelas, F. (2020). Trabalho e desigualdades no Grande Confinamento (II) (Estudos CoLABOR, Nº2/2020).
- Portugal: Uma análise rápida do impacto da COVID-19 na economia e no mercado de trabalho, Ricardo Paes Mamede ISCTE-IUL (coord.) Mariana Pereira OIT-Lisboa António Simões ISCTE-IUL, ILO 2020.
5. Sapir, A. (2020) ‘Why has COVID-19 hit different European Union economies so differently?’, Policy Contribution 2020/18, Bruegel