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MARTA TEMIDO Natural de Coimbra, nasceu em 1974. Licenciou-se em Direito, fez o mestrado em Gestão e Economia da Saúde e mais tarde doutorou-se em Saúde Internacional. Exerceu responsabilidades de administração e gestão em diversos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, assim como em outras entidades do setor, nomeadamente na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, à qual presidiu entre 2013 e 2015. Em 2014 tornou-se formalmente simpatizante do Partido Socialista para poder votar nas eleições diretas do partido e a partir daí “há uma aproximação inequívoca” ao PS. Em 2018 é nomeada Ministra da Saúde, enquanto independente, e o seu mandato ficará para sempre marcado pela gestão da pandemia da covid-19. O cartão de militante é-lhe entregue “em direto” no Congresso do PS, em agosto de 2021, quando “já não era possível estar fora [do partido] porque na verdade já estava dentro”. Ocupa o cargo de deputada à Assembleia da República. ________________________________ |
“HÁ UM VALOR INTRÍNSECO EM PODER ACOMPANHAR UM PARTIDO SENDO INDEPENDENTE”Porquê o PS? Por várias razões, mas principalmente porque o Partido Socialista é o partido da democracia. Por um lado, pelo papel que teve ainda no tempo da ditadura, com muitos militantes antifascistas e, portanto, um contributo decisivo para aquilo que foi a preparação do trabalho necessário a derrubar o regime. Depois, também pelo próprio papel na defesa de uma democracia pluralista logo no pós 25 de Abril. E hoje pela importância daquilo que é a ação do Partido Socialista na contínua afirmação da democracia. Isto é um aspeto que eu acho que é essencial e basilar ao próprio Partido Socialista. Também porque é o partido da luta por uma sociedade mais justa e mais solidária. E naturalmente essa sociedade mais justa e mais solidária é uma sociedade em construção, portanto, é um trabalho também de persistência e de tenacidade e acho que esse é um valor muito importante, o valor de não aceitarmos fatalismos, não nos conformarmos, por último, porque é simultaneamente um partido progressista, um partido de causas, desde as causas das minorias, às causas ambientais. E, portanto, destaco estas três dimensões: os valores da democracia, que nunca estão totalmente consolidados, e os tempos que vamos vivendo mostram-nos bem isso, a democracia e a defesa da democracia não é algo que está no passado; depois a luta permanente e constante pelo aperfeiçoamento da sociedade para uma sociedade mais coesa, mais igualitária, e a dimensão da capacidade de acreditar em causas progressistas, modernizadoras, de vanguarda, que construam essa democracia e essa sociedade mais justa de olhos sempre postos no futuro. Conte-nos como foi a sua adesão ao PS. Como foi esse caminho até se inscrever como militante em 2021? Eu nunca estive envolvida em juventudes partidárias. Quando estava na faculdade a minha participação social era mais pelo lado de alguns movimentos cívicos e de apoio a causas sociais. Apesar disso, sempre estive próxima dos partidos de esquerda com o voto não necessariamente só no Partido Socialista, e isso quer dizer várias coisas consoante estamos a falar do voto para a Junta de Freguesia ou do voto nas legislativas ou no voto da Presidência da República. Depois há um momento em que eu me torno simpatizante do Partido Socialista para poder votar nas eleições diretas [de 2014] e esse é o primeiro momento mais formal. Independentemente de já acompanhar o Partido Socialista enquanto simpatizante, a inscrição como simpatizante também é um momento porque para aqueles da sociedade civil não militantes, que não se tornaram militantes nessa altura, mas que se puderam inscrever para usar da palavra foi um momento muito importante. A partir daí há um compromisso de maior acompanhamento, porque quando temos uma palavra na escolha de um candidato ficamos comprometidos e temos uma obrigação maior de estar disponíveis, mas também de vigilância sobre a ação. E, portanto, aí há uma aproximação inequívoca. Várias vezes tive a tentação, a reflexão e até a conversa sobre “e se?” Nunca se proporcionou, até por uma razão simples e muito pragmática: também há um valor intrínseco em poder acompanhar um partido sendo independente. Depois houve um momento em que já não era possível estar fora porque, na verdade, já estava dentro. Estava preocupada com o PS, preocupada com as escolhas do PS, com o seu projeto político e, num momento que também tinha características próprias tornei-me militante. * * *
A criação da geringonça “é o momento de deslumbramento, de entusiasmo, de renascimento, de acreditar que ia mesmo ser possível fazer um projeto diferente para o país”. * * * Na sua opinião, qual foi o contributo mais importante do PS para a democracia portuguesa?
Já referi que o PS foi decisivo para a própria democracia. Eu tenho do PS a perspetiva de que é um partido radicalmente democrata, ou seja, mesmo na vida interna do partido, a democracia, o pluralismo, a diversidade de opiniões, é muito estimulada e isso dá sempre muito trabalho, porque normalmente é mais fácil e mais rápido chegar a soluções monolíticas e de autocracia, mas o PS tem de facto esse contributo essencial. Sob o ponto de vista mais geral, não posso deixar de falar na saúde. Acho que é evidente que a construção do Serviço Nacional de Saúde e o nome de António Arnaut são indissociáveis daquilo que é a vida do Partido Socialista e dos contributos do Partido Socialista para a sociedade portuguesa. Não estamos a falar só do resgatar da situação de falta de acesso a cuidados de saúde – e quando digo falta de acesso não é listas de espera ou dificuldades de acesso, é mesmo o não acesso a cuidados de saúde, embora o caminho sempre inacabado ao acesso universal a cuidados de saúde – [falo] das políticas de droga, com a retirada do elenco das penas do consumo, das políticas de redução de danos, das políticas em relação aos cuidados continuados… Na área da saúde o PS sempre foi o partido progressista. Depois há outro passo, que eu acho que os portugueses reconhecem, que é o contributo do PS para a integração do país na União Europeia. A capacidade de logo a seguir à democracia ter essa visão de que não bastava ter derrubado o regime totalitário, era preciso virar [Portugal] para a Europa e para esse espaço comum onde nos integramos, numa lógica de espaço aberto ao mundo. [Resumindo] acho que estes três aspetos: a democracia, a questão da saúde, que para mim é essencial na forma onde eu me coloco a olhar para o mundo, e numa ótica mais genérica o processo e a disponibilidade para construir uma Europa onde todos tenham sempre lugar. Quais foram os acontecimentos / momentos políticos para si mais marcantes na história do PS? Eu ouço ainda a voz do doutor Mário Soares. Nasci em 1974 e todos aqueles debates mais acesos são para mim uma memória histórica. Lembro-me dos 1º de Maio e também de alguma disputa entre os partidos da esquerda pela presença na rua, com alguma incompreensão porque não percebia muito bem porque é que havia aquelas tensões… Mas o grande momento para mim é o momento em que se consegue construir a célebre “geringonça”. É o momento que me está mais próximo face à minha militância recente, é o momento de um enorme empolgamento e de um deslumbramento daqueles que têm uma visão de acordo com o conjunto de princípios e que acham que faz sentido que a esquerda trabalhe em conjunto na afirmação de um conjunto de escolhas. E, portanto, com todos os amargos de boca que depois existiram - e pessoalmente, politicamente tive vários - esse é o momento de deslumbramento, de entusiasmo, de renascimento, de acreditar que ia mesmo ser possível fazer um projeto diferente para o país.
Quem foram/são para si as maiores referências ou as referências fundamentais do PS que mais a influenciaram ou inspiraram? Não podia deixar de referir António Arnaut porque conheci pessoalmente, bastante bem, fui estagiária no escritório de advocacia dele, do filho e de outros associados, em Coimbra. Aliás, tive a sorte de ter aulas de ética e deontologia com ele, era uma figura que nos inspirava e que tinha princípios muito sólidos em relação à construção do Serviço Nacional de Saúde. * * *
“Na área da saúde o PS sempre foi o partido progressista”. * * * Uma inspiração: Jorge Sampaio. Pela capacidade de sonhar e pela capacidade de proximidade também. Era um homem inteligentíssimo, com uma visão notável, que teve uma vida recheada de momentos que nos inspiram. Tinha ele próprio um ar, uma fisionomia de sonhador, portanto, isso também fazia parte da mística, digamos assim. Olhando para trás e olhando sobretudo para o presente, penso que diferença! Conseguimos ter um Presidente que não só cuidava daquilo que eram os equilíbrios, mas também [um homem] preocupado com as causas do mundo, que olhava não só para o curto prazo e para a espuma dos dias e para as lutas pelo poder, como foi capaz de tomar decisões de uma enorme equidistância, que lhe custaram relações pessoais provavelmente, e que foi capaz de ter no mundo um papel tão importante como o de inspirar a causa dos estudantes sírios, a luta contra a tuberculose, Timor, o HIV… não ficou aqui no “retângulo” e, de facto, nós não podemos pensar em ficar presos ao nosso umbigo, aquelas coisas pequeninas e comezinhas, porque isso é o princípio do fim.
Quais as questões mais desafiantes que se colocam ao presente e ao futuro do PS? São muitas, mas destaco duas. A democracia porque a democracia está em risco A descredibilização das instituições, da justiça, da Assembleia da República, dos tribunais é claramente uma fragilização da democracia e nós não só vemos isso como temos sinais de que isso está a acontecer. Não é só o confrontarmo-nos com isso, é ter sinais! Até na forma como na comunicação às vezes passa determinadas notícias que é suposto serem segredo justiça, em que é suposto haver uma proteção da presunção da inocência e às páginas tantas já é tudo uma história e já não sabemos onde é que começa e onde é que acaba. Aliás, não sei se o fundamento de tudo não é mesmo essa crise da comunicação social e de falta de maior qualidade da comunicação social… Por outro lado, a luta contra a pobreza e as desigualdades. Sempre! Todos os dias! Uma luta contínua que está muitíssimo longe de estar acabada. No contexto da revisão constitucional fala-se da ideia da inscrição da erradicação da pobreza como uma ideia possível. É bom que as Constituições tenham essa marca aspiracional, mas temos ainda muitos passos para dar em relação aos temas que têm a ver com a pobreza no nosso dia-a-dia. As pessoas precisam de respostas que sejam claras e que respondam efetivamente aos problemas. Portanto, essa é a outra dificuldade. Não basta afirmar princípios, é preciso encontrar soluções participadas. A universalização da saúde ainda está por concretizar em muitos domínios, a habitação digna e financeiramente sustentável é hoje um problema enorme, as questões da escola pública, apesar de todos os enormes sucessos que atingimos em termos de resultados, ainda têm necessidade de melhoria em grupos etários que não apanharam necessariamente esse boom da escola pública e que se relacionam connosco e que nós não podemos esquecer. Há muito trabalho para fazer. * * *
“O socialismo não terá um fim, é uma evolução continuada porque é aspiracional e tem naturalmente futuro porque há sempre mais para fazer, há sempre mais para concretizar.” * * * O socialismo e a social-democracia são história ou resposta para o futuro?
Por tudo o que já disse são naturalmente uma resposta para o futuro. Porque todos os problemas que justificaram que os movimentos socialistas e de social-democracia emergissem, permanecem hoje na nossa sociedade, não têm exatamente as mesmas configurações, mas evidentemente que esta questão da luta por uma sociedade mais justa, mais solidária, é um trabalho contínuo, está longe de estar acabado. E para aqueles que tendem a achar que a economia de mercado e o mercado resolvem tudo, a sociedade está cheia de provas de que assim não é. Tanto assim não é que quando a economia de mercado falha se procura o Estado e isso aconteceu nas crises financeiras, aconteceu nas crises sanitárias, aconteceu nas crises políticas e, portanto, não há dúvida nenhuma de que nós precisamos que a dimensão social exista e seja intrínseca ao desenho do mundo e ao desenho do futuro. Não quereria viver numa sociedade que abdicasse desta forma de estar, destas escolhas. E por isso é que me revejo nelas e por isso é que continuo a lutar por elas, de uma forma mais ou menos visível. Ameaças há muitas e a maior ameaça é a nossa dificuldade na concretização, porque o nosso projeto é de tal forma ambicioso e inconformista que muitas vezes se torna difícil e serão sempre aperfeiçoáveis as respostas que em cada momento se vão encontrando. Acho que o socialismo não terá um fim, é uma evolução continuada porque é aspiracional e tem naturalmente futuro porque há sempre mais para fazer, há sempre mais para concretizar. Muitas vezes pensamos na nossa sociedade em termos dos problemas que estão em cima da mesa, mas esquecemo-nos que por trás desses problemas que estão em cima da mesa normalmente há – volto a falar no jargão da saúde – aquilo a que chamamos determinantes sociais e que são os preditores do insucesso escolar, da má saúde, da dificuldade de integração, das condutas criminosas, da fraca saúde mental, e isso tudo se resolve com uma sociedade mais solidária, mãos coesa e mais justa e, portanto, há e haverá, não só em Portugal, muito trabalho para fazer nesse sentido, sobretudo se sairmos só da nossa perspetiva, ou do país ou de Europa. A construção de uma sociedade mais justa não é aqui no bairro, ou na minha cidade ou sequer no meu país. Quase que me apetece dizer que infelizmente há muito futuro porque há muito trabalho pela frente.
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no. 04 // novembro 2023 Entrevista download PDF FUNDAÇÃO RES PUBLICA A Fundação Res Publica é uma instituição dedicada ao pensamento político e às políticas públicas. À luz dos seus estatutos, inspira-se nos valores e princípios da liberdade, da igualdade, da justiça, da fraternidade, da dignidade e dos direitos humanos. fundacaorespublica.pt |